29 julho 2011

OLHAR AO FÚNEBRE


Trabalhoso não é morrer*


Fui ao velório de uma amiga. A morte e o sepultamento sempre tiveram seus rituais e teatros, com as particularidades de cada povo e civilização. 

Minha amiga sofria de doença cardiovascular grave, fez várias cirurgias, colocou próteses nos vasos, tomava caixas de medicação e já completara os seus 84 anos. 

Teve uma parada cardíaca, deu entrada quase sem vida numa emergência, foi levada a uma UTI, entubada e reanimada sem sucesso. 

A família e os médicos, mesmo conhecendo a gravidade do caso, mesmo sabendo que as chances da paciente sobreviver eram mínimas, não aceitaram o desfecho da história. Esse é o primeiro ato.

Desde os primórdios o homem se pergunta por que tem fim nossa capacidade de ver, de ouvir, de caminhar e de falar. Elaborou imagens sobre a morte, tentou representá-la. Apareceram rudimentos de cidades, aumentaram os agrupamentos humanos e as questões se alargaram. 

A morte é para sempre ou apenas transitória? Teremos outra vida depois dessa, num lugar longe daqui? As perguntas se transformaram em representações na pintura, na poesia, na música, no teatro e na dança. Surgiram a arte e a filosofia, fundaram-se as religiões, elaboram-se os conceitos de alma e espírito.

O segundo ato. O cemitério numa colina possui ótimas instalações, túmulos cobertos de grama, lápides planas. Parece um campo de golfe que resvala em despenhadeiros. A altura sem obstáculos permite que se veja um por de sol inesquecível. 

Tudo de bom. Os familiares sentem-se apaziguados e assumem um comportamento discreto, sem excessos de choro e lamento. Acreditam que seus mortos, a sete palmos da superfície, descansarão na paz eterna.

Na despedida, levaram o corpo a uma sala ampla, sem símbolos religiosos, com uma mesa coberta por uma toalha de renda, onde se celebraram as exéquias. O corpo foi recomendado a Deus por um padre, dentro do ritual católico. Um filho pediu a palavra e fez um pequeno inventário das bondades da morta. 

O caixão foi posto em frente ao altar improvisado, entre filas de cadeiras. As coroas de flores descansavam dos lados, removeram a tampa do caixão para que todos pudessem olhar uma última vez a que se despedia desse mundo. Foi o terceiro ato.

As funerárias cobrem os mortos com flores e deixam apenas o rosto de fora. Não sei de onde veio o costume. Houve tempo em que se procedia assim apenas com as crianças, os anjinhos. O padre sacode água benta na morta, nos familiares e em todos os presentes. Já não usa o hissope para aspergir, mas um tubinho plástico bem ao gosto da igreja contemporânea. 

Os judeus não deixam seus mortos expostos, eles são fechados em ataúdes e deixados num lugar à parte do velório. É como se já tivessem partido e o corpo não representasse muito. Nós temos o mau gosto de contemplar os nossos defuntos, olhar a última feição da morte.

Minha amiga desejou ser cremada e a família atendeu-a. Nada de retornar à terra de onde veio, nem ser esmagada por mausoléus descomunais como os de La Recoleta, em Buenos Aires, ou os do Père-la-chaise, em Paris. Nada do lento processo de decomposição, entregue a bactérias e micro organismos do solo ou à ação corrosiva do tempo. 

Em seis horas de forno, necessárias ao aquecimento a uma temperatura máxima e ao desaquecimento, o corpo, as roupas, as flores e o caixão – desprovido das alças metálicas – se transformam num punhado de cinzas. Forno crematório. Não gosto desse nome porque me traz à memória outros fornos de passado sombrio, nos campos de extermínio.

De uma abertura invisível no teto, caem pétalas de rosas de várias cores sobre a morta. Uma portinhola se abre automaticamente e o caixão é sugado para dentro de um vazio escuro como a noite. 

Último ato. Levaram o caixão de tampa lacrada a uma nova sala, espécie de anfiteatro, e o colocaram sobre uma plataforma, a uns dois metros do chão. As coroas de flores foram dispostas em longa fila. Os amigos e parentes sentam-se em poltronas confortáveis. Toca uma música solene, que termina num grand finale

Após o ato final. As pessoas ganham as ruas da cidade nos seus carros de faróis acesos. A cidade traga os móbiles vivos, enquanto o cemitério no alto aguarda por eles, sem pressa.

A música cresce, a portinhola se fecha. Apenas as coroas de flores restam aos olhos, sozinhas, sem a homenageada. Todos aplaudem em despedida, emocionados com a cena perfeita.


*Radicado em Recife, o cearense Ronaldo Correia de Brito é escritor, dramaturgo, roteirista, médico e autor de Galileia, A Faca, O Livro dos Homens e vários contos (imagem em www.satisfeitayolanda.com.br )



SAIBA MAIS

12 julho 2011

VENENOS: MAPEAMENTO


Agrotóxicos no Ceará*

Há quatro anos, a fim de elaborar este projeto, estendíamos a mão à Fundação Cearense de Apoio à Pesquisa (FUNCAP), na busca de respaldo financeiro (menos de R$ 4 mil/mês). Não tardaria o indeferimento: "Negado. Não há recursos". Em última instância, recorríamos ao prestigiado jornalista Demócrito Dummar, solicitando-lhe interferência junto àquela instituição, na esperança de reverter o quadro. 

Todavia, não tardaria a resposta do saudoso amigo: "Debalde os meus esforços, os meus apelos, doutor. Aliás, quem já viu governo bater de frente contra as multinacionais dos agrovenenos?", sentenciou taxativamente. Inobstante, o clarividente Dummar foi-me generoso em seu incentivo: "Seu estudo, Júlio, é muito importante. Não recue, vá em frente e conte com O Povo para divulgar os resultados". Assim o fiz.

Quase sozinhos, dávamos continuidade ao projeto. Lenta, mas tenazmente. Cativo apenas à lúcida parceria da pesquisadora Erbene Góes da Ponte, admirável exemplo de esposa dedicada e competente.

Na incansável busca de dados, palmilhamos todos os recantos do Ceará, cerca de 15 mil quilômetros. Enfim, tudo concluso. E, abaixo, alinhadas e em ordem decrescente dos respectivos investimentos em agrotóxicos: 1) Ibiapaba, com 26%; 2) Vale do Jaguaribe, 24%; 3) Litoral, 17%; 4) Maciço de Baturité, 15%; 5) Cariri, 8%; 6) Sertão Norte, 6%; 7) Sertão Central, 3%, e 8) Inhamuns, 1%.

Em sua totalidade, comercializam-se, no Ceará, 24 mil t/ano, o correspondente a 3% de todo o consumo nacional (800 mil t/ano). Vale lembrar que o Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos e, segundo a FAO, o primeiro também no ranking em mortandade por câncer. 

Agrotóxico e câncer estão intrinsecamente ligados pelos liames de causa/efeito. Neste Estado, até 1960, o percentual de óbitos por câncer girava em torno de 0,1%. Hoje, é da ordem de 16%. Com efeito, não há, atualmente, nenhuma família que não deplore a morte de um ente querido vitimado por tal doença.

Não obstante, alheios ao problema, médicos e nutricionistas, por descaso ou ignorância, continuam a receitar dietas vegetarianas sem advertir sobre frutas e hortaliças envenenadas. São os profetas do câncer. Na infame lista dos males causados por agrotóxicos, alinham-se doenças graves e deploráveis desequilíbrios ambientais.

Dentre os produtos agrícolas mais envenenados, tomate, morango, alface e demais verduras folhosas prevalecem nos primeiros lugares, logo seguidos de uva, goiaba, melão, melancia, batata, citros, banana, legumes e cereais. 

Entre os agrotóxicos mais difundidos no Ceará, sobrelevam-se Tomaron, Malution, Decis, Folidol, Mancozeb e Monocrofton, todos de alta toxicidade e, há anos, prescritos na Europa, América do Norte e até no Senegal e na Mauritânia. No Brasil, continuam livres. Por quê? Perguntem ao ex-ministro Reinhold Stephanes e à retrógrada bancada ruralista do parlamento.

Urge um "basta!" aos agrotóxicos. Em termos prescritos ao Ceará, vale um crédito de confiança no atual secretário de Agricultura, Nelson Martins, agrônomo consciente e, até ontem, deputado estadual brilhante e destemido. Louvado seja!

*o engenheiro agrônomo José Júlio da Ponte Filho é presidente da Associação Cearense de Ciência, professor emérito e livre-docente da cadeira de Fitopatologia do Curso de Agronomia da UFC e desde 2007 comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico. É ainda o criador de um substituto eficaz ao uso de agrotóxicos, para o qual solicitou patente, a "Produção de manipueira em pó para utilização como insumo agrícola: defensivo e fertilizante". Tal invenção, inteiramente original, pretende prover a produção de manipueira (extrato líquido das raizes de mandioca, Manihot esculenta) em pó, mediante processo de liofilização, de sorte a manter praticamente intactos os componentes responsáveis por sua extraordinária eficácia como defensivo e fertilizante agrícolas, conforme os compostos em seu estado original, ou seja, na forma líquida. Em forma de pó e devidamente acondicionada em embalagens apropriadas, a manipueira torna-se disponível durante todo o ano e a qualquer tempo ou distância, corrigindo-se, assim, as suas duas principais limitações: a sazonalidade (o composto dificilmente é encontrado na estação chuvosa, época pouco adequada à farinhada) e, em muitos casos, a dificuldade em obtê-la dada a grande distância que separa a propriedade rural do usuário do centro de produção de mandioca, de cuja industrialização a manipueira é um subproduto. Além do mais, superando outra limitação do composto natural: a curta durabilidade dos seus préstimos como insumo agrícola, pois a manipueira à temperatura ambiente perde sua eficácia a partir do quarto dia após a extração, dada a sua fermentação (imagem editada de www.agencia.cnptia.embrapa.br). 

01 julho 2011

SOM E SANIDADE

Ode ao silêncio*


Se existe uma coisa com a qual não consigo me conformar, por mais que eu tente denodadamente nos últimos tempos, é com a barulheira caótica, ensandecedora e infernal que assola esta cidade em que sobrevivo, transito e me morro de amores. 

E o que é pior, não tem hora nem dia para começar o diabólico pandemônio. Tanto faz se é de manhã cedo, de tarde, no começo da noite ou até mesmo altas madrugadas. Pouco importa que estejamos em pleno feriado, ou seja um sábado, um domingo. 

Parece que a palavra "silêncio" foi sendo paulatinamente riscada do mapa do respeito ao sossego do próximo e do distante. Não há ouvido humano capaz de suportar a zoadeira generalizada que estoura, sem dó nem piedade, os sofridos tímpanos dos habitantes desta metrópole sem dono, tiranicamente dominada pelos malditos paredões de som que infernam a vida de quem nela habita de modo duradouro ou provisório.

Portanto, acima de tudo que me cerca nesta minha para sempre amada Loura Desposada, banhada pelo sol equatorial, a mim me resta um único e desesperado apelo que ora lanço aos ares como uma branca bandeira de trégua em meio a essa batalha citadina. 

Premido, imprensado entre o sossego e o desassossego, agoniadamente imploro: silêncio, pelo amor de Deus e de todos os santos. Silêncio, eu encarecidamente suplico. Só um bocadinho de silêncio é que o que peço agora. 

Será demais ou um vão e inútil pedido desejar um pouco de silêncio para que eu possa ouvir, sem interferências pandemônicas meus próprios, vadios pensamentos? Acredito que não. 

Afinal, numa cidade modestamente civilizada, em que ainda reste um resquício de indispensável gentileza, todo e qualquer cidadão possui o sagrado direito a um pouco de silêncio, por mínimo que seja, para ser, vez em quando, um Robinson Crusoé de si mesmo, sem a companhia de um Sexta-Feira e sem radinho de pilha na tranquilidade do seu lar.

Sim, evidente que concordo inteiramente com a célebre frase de um autor cujo nome, nesse instante, se escapa à minha não tão confiável memória: nenhum homem é uma ilha. Porém, o que me custa tentar sê-lo uma vez ou outra, quando assim bem o desejar e carecer? 

Ah, que imensa falta me faz o silêncio, por demais bem-vindo nessa tarde tão bela, que tinha tudo para ser de uma calma ansiolítica, quieta, mansa, suavemente recoberta por uma vestimenta silenciosa como uma cadelinha domesticada. 

E não é. Infelizmente, há demasiado barulho ao meu redor. Vozes que ressoam alto dentro dos bares vizinhos, buzinar atordoante dos carros, aparelhos de som estrondeando as insuportáveis trilhas sonoras de um estúpido mau gosto, uma babel de irritantes cacofonias que minhas sambadas oiças já não são capazes de suportar até que me atinja a surdez definitiva, irreversível. 

Não duvido nada que haja baixado em mim um espírito de eremita e tudo o que é humano me parece estranho, exceto o toque-toque das teclas do computador.

No entanto, onde exilar-me na cidade que, ora sim, ora não, sinto que não mais me pertence? Nada do silêncio estéril das catacumbas, da solidão dos cemitérios. Mas o silêncio poético de quem anseia encontrar-se consigo mesmo. 

Da espreguiçadeira instalada no alpendre, observo a vida miúda das formigas laborando, incansáveis, no espaço do quintal, onde algumas plantinhas teimam em brotar nas frestas do cimento. Também procuro ao longo dos telhados o grande gato gordo que não mais os povoa, a caçar pombos invisíveis. 

Somos tão iguais, eu e o desaparecido velho gato grande, gordo, imersos na tarde morna que tinha tudo para ser calma, quieta, mansa, suavemente silenciosa e que assim não o é. Enfim, descubro tristemente que o silêncio por mim desejado é impossível de se obter nesta urbe barulhenta e bárbara. 

Que saudades me dá do suburbano silêncio da minha louca mocidade, tão pacificamente prenhe de segredos, sossegos e maravilhosos mistérios.

*O escritor, cronista, médico-psiquiatra e colunista do Jornal da Praia desde 
os anos 1980, Antônio Airton Machado Monte, é um autêntico repórter desta época que habitamos