19 julho 2016

IDOS E CONVERGENTES



O cordel contra a guerra*

(recuerdos de 2003 em um século de aprofundamento da barbárie)







“Se veem sinais de protesto
Nas TVs e nos jornais
E em passeatas gigantes
Que em toda a Terra se faz;
São velas tristes, acesas

Para o velório da paz”

Sob as bênçãos de Leandro Gomes de Barros, no mês de seu aniversário (abril), o cordel mostra que continua revitalizando sua função jornalística tradicional. 


Depois da publicação, em 12 de setembro de 2001, por Arievaldo e Klévisson Viana, de O Sangrento Ataque Terrorista que Atacou os EUA, outros dois lançamentos mostram ao mundo o interesse humanitário desta arte — que teve em Leandro uma de suas principais referências. 

Trata-se de dois manifestos contra a guerra invasora e irascível declarada pelos Estados Unidos contra a nação iraquiana, há duas semanas. O primeiro folheto é O Conflito do Iraque e os 3 Tiranos da Guerra, de Geraldo Amâncio e Klévisson Viana, autores dos versos acima. O segundo, de Guaipuan Vieira: Monstro Americano Destrói Inocentes no Iraque

Nos dois folhetos, à venda em bancas do Centro, os cordelistas utilizam velhos referenciais simbólicos. Como em todos os momentos de temor universal, o Apocalipse volta a ser mencionado.

“Nenhum poder se eterniza
Nenhum homem é imortal
Quando ele pensar que é
Tiver Deus como rival
O tempo antecipa a vinda
Do Apocalipse final”, 

comentam Klévisson e Amâncio. Enquanto isso, Guaipuan prevê, ao final do seu cordel: 

“Mas a trombeta já soa
O mundo ouve o seu som
A profecia nunca mente
Tem o profeta seu dom
Os dias já se aproximam

Do terrível Armaggedon”.

Mas as principais referências são mesmo em relação ao presidente norte-americano George Bush. 


“Alguém pode ignorar
Esta minha opinião
Mas quem olhar com cuidado
Logo me dará razão
Que a prepotência de Bush
Arrasa qualquer nação”, 

escreve Guaipuan comparando-o ao próprio presidente iraquiano, Saddam Husseim, e a outros líderes históricos mais “sanguinários”, como Nero, Mussolini, Stalin, Kadafi, Franco, Pinochet, Molosevic, Stroesnner, Kim Jong-Il, Bin Laden.

Não faltou nem Hitler, nos versos de Klévisson e Amâncio: 


“Da mesma forma que Hitler
Fez cercar Stalingrado
O povo de Bagdá
Também se encontra cercado
Por mísseis de todo jeito
Por tropas de todo lado”. 

Eles também enfatizam: 

“George Bush está querendo
Ser de Deus substituto
Pra ele, só ele é dono
Do poder absoluto
Só ele é quem é legítimo
O resto é subproduto”. 

Descaso que não condiz com a tradição cultural do povo iraquiano. 

“Iraque foi Babilônia
De Nabucodonosor
Terra dos Jardins Suspensos
História, paz e amor
Hoje é cenário de morte

Sangue, tragédia e horror”.

Também não faltam críticas às intenções norte-americanas, em sua invasão, desautorizada pela fragilizada Organização das Nações Unidas. 


“O alvo mais desejado
Do domínio americano
É o petróleo do Iraque
O Saddam é só pra engano
Serve apenas de fachada
Para o poderio tirano”, 

afirma Guaipuan, afirmando que a ONU teria sido “ludibriada” e “teve as suas portas fechadas pelo governo americano”, apesar de Hans Blix e sua comissão haverem constatado que “a chamada arma química/já se encontrava ausente”. 

Empáfia que gerou questionamentos, de França, Rússia e Alemanha, “Que disseram: não à guerra/Porque ao mundo envergonha/A falta de diplomacia/Que para Bush é estranha”.

Com grande consciência política, o cordelista piauiense radicado no Ceará acrescenta algumas conseqüências da doutrina de “ação preventiva” de Bush. 


“Acordos que constituem
As bases do bom direito
Internacional afirmo
Não terão o seu respeito
Por isto daqui pra frente
Rasgaram de qualquer jeito”. 

E não deixa de fazer a pergunta primordial, que questiona e a covardia contra o Iraque: 

“Sobre armas nucleares
Tem a Ìndia e Paquistão
Também Coréia do Norte
Israel com a mesma ação
Mas por que somente o Iraque

Teve sua condenação?”.

É da lira dos cearenses Klévisson e Geraldo também estes questionamentos veementes: 


“Por que não se deu mais tempo
À ONU e aos seus fiscais
Para que achassem as armas
Que há muito se anda atrás?
Depois levassem Saddam

À forca ou aos tribunais”.

Mas os dois não deixam de ponderar: 


“Para defender Saddam
Minha caneta não movo
Não concordo com o regime
Nem os seus crimes eu louvo
Discordo é do genócidio
Cometido contra o povo”, 

sempre acentuando o valor que vida tem: 

“A terra que escuta as preces
Das famílias muçulmanas
Cedeu lugar à violência
E às ambições mundanas
Que ceifam precocemente
Milhões de vidas humanas”. 

Impressões de brasileiros que se sensibilizaram contra a insanidade bélica que atinge todos nós.

O encontro entre os dois aconteceu logo no primeiro sábado da guerra. “Geraldo ligou para mim, já estava com mais da metade pronto. Depois, fizemos tudo separado e de um dia para o outro, tínhamos o cordel pronto", comentou Klévisson. 


Em breve, o cordel também poderá ser apreciado em um CD — onde os poetas foram acompanhados pela rabeca do músico Max Krichanã em uma sonoridade incidental, mourisca.

Filho do poeta popular Hermes Vieira, o piauiense Guaipuan Vieira considera-se da mesma cepa, que “antes seguia a linha moderna”. Foi depois de manter contato com a Casa de Juvenal Galeno que suas origens bateram mais fortes. 


De lá para cá, foram 120 folhetos publicados, além do livro “Canta Cordel” e do inédito “Veredas do Cordel - poemas, causos e comédias”, em que o autor considera que fala diretamente "o dialeto do homem do campo".

*por Henrique Nunes - Da Editoria do Caderno 3
(conteúdo publicado em 02/04/03 no jornal Diário do Nordeste)