14 novembro 2007

ECOSSOCIALISMO

Ecologismo dos Pobres?


“Do ponto de vista de uma formação socioeconômica mais avançada, a propriedade privada dos indivíduos na Terra parecerá tão absurda como a propriedade de um homem sobre outros homens. Mesmo uma sociedade inteira, uma nação, ou mesmo todas as sociedades existentes num dado momento, em conjunto, não são donos da Terra. São simplesmente os seus possuidores, os seus beneficiários, e têm que a legar, num estado melhorado, para as gerações seguintes, como boni patri familias (bons pais de família).” Karl Marx, em O Capital


John Bellamy Foster, autor de um dos livros mais importantes para os ecossocialistas (A ecologia de Marx, materialismo e natureza, Civilização Brasileira), em artigo recente, intitulado A ecologia da destruição, chama-nos a atenção para o fato de que “é uma característica da nossa época que a devastação global pareça sobrepor-se a todos os outros problemas, ameaçando a sobrevivência da Terra como a conhecemos”.

A grande repercussão do quarto relatório do IPCC-sigla em inglês do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU-Organização das Nações Unidas, em que milhares de cientistas de quase todo o planeta não só constataram a relação direta entre fenômenos climáticos intensos decorrentes do aquecimento global — com a emissão dos chamados GEE-gases de efeito estufa pelas atividades industriais, energéticas e agrícolas —, mas também apontaram projeções catastróficas para este século caso não haja drástica mudança na matriz energética e no padrão de consumo, deu foros de cientificidade ao documentário Uma verdade inconveniente, do ex-vice-presidente estadunidense Al Gore, que recebeu o Oscar em 2007 e também, juntamente com o próprio IPCC, o prêmio Nobel da Paz.

Portanto, com exceção da minoria dos chamados “céticos”, entre os quais figuram cientistas sérios como o brasileiro Aziz Ab'Saber e organizações bancadas pelo governo Bush e pelas grandes indústrias de petróleo e carvão mineral no mundo, há uma ampla maioria de representantes da comunidade científica (e aqui perfilam-se brasileiros como José Goldenberg, Carlos Nobre e Luis Pinguelli Rosa), dos movimentos ambientalistas, de governos e até de setores empresariais que, a partir dos dados do IPCC, procuram encontrar saídas para a crise planetária, manifestada hoje pelo aquecimento global que ameaça a vida na Terra.

Abram-se aqui parênteses para aduzir que a aposta que os céticos — em sua versão séria e não comprometida com os interesses do capital petroleiro e mineiro — fazem é uma aposta perdida, em suas duas possibilidades: se eles estiverem errados (quando afirmam que o fenômeno do superaquecimento é natural e que as previsões do IPCC estão equivocadas), podem, de forma involuntária, estarem contribuindo com o lobby das grandes corporações petrolíferas e mineiras, impedindo a mudança do padrão energético para as fontes renováveis e serem co-responsáveis pela catástrofe que se prenuncia. Por outro lado, se estiverem certos (contrariando o amplo consenso científico alcançado depois de quase 20 anos de IPCC), estão atrasando a nossa evolução para a despoluição do planeta.

Ou seja, ainda que, numa hipótese quase absurda, não esteja ocorrendo o aquecimento provocado pelas atividades humanas, o alerta do IPCC, no mínimo, questiona o modo de produção e o modo de vida humana no planeta e nos induz a mudanças profundas e necessárias.

Vou apenas listar, em parte, o extenso e impactante elenco de fenômenos climáticos e suas resultantes sobre a vida no planeta, já amplamente divulgados na imprensa, como o acréscimo da temperatura média da Terra, o derretimento das geleiras e calotas polares, a desaparição de espécies, a subida do nível do mar, a desertificação e seus impactos sobre a humanidade, que poderá conviver — aliás, já está convivendo — com os chamados “refugiados ambientais”, vítimas de enchentes, tornados, secas, furacões, que, nos últimos tempos, têm atingido populações tão diversas como as asiáticas, as das pequenas ilhas do Pacífico ou, mesmo, nas terras do império americano, com o furacão Katrina, em New Orleans, e o incêndio que devastou a Califórnia nos últimos dias.

Em nosso País — quarto maior emissor de GEE, em face das queimadas e desmatamentos de nossas florestas —, o que se prenuncia é gravíssimo. Se, em todo o planeta, no próximo século, ultrapassarmos a linha perigosa de acréscimo de 2ºC na temperatura média da terra, metade de nossa Floresta Amazônica (a mais importante cobertura vegetal tropical do planeta) se transformará em savana, causando profundo impacto não só à temperatura da Terra, como no regime de chuvas em todo o Hemisfério Sul. Para o Nordeste brasileiro, as previsões não são menos sombrias. Nosso semi-árido, que, mais uma vez, convive com uma estiagem prolongada, se transformaria em região árida, num quase deserto, sem água e sem produção agrícola.

Estaríamos diante do Apocalipse? Paulo Artaxo, um dos cientistas brasileiros do IPCC, tenta nos tranqüilizar: “O aquecimento global não é o fim do mundo, de jeito nenhum”, mas adverte: “Um dos pontos cruciais do relatório do IPCC é a urgência da diminuição da emissão dos gases do efeito estufa. Se não fizermos isso, a temperatura pode subir de forma a trazer danos para os ecossistemas e zonas costeiras sem precedentes na História da Humanidade”. Para ele – e o IPCC – esse corte deveria ser em torno de 50% a 70%. (revista Caros Amigos, edição especial: Aquecimento global, a busca de soluções)

Ora, a necessidade imperiosa da redução na emissão de GEE na escala de 50% a 70% torna o Protocolo de Kyoto (que, todos sabemos, não foi assinado nem pelos EUA, primeiro ou segundo maior emissor de CO2, nem pela Austrália, uma das maiores exploradoras de carvão mineral) uma iniciativa absolutamente obsoleta e inócua. Recordemos: Kyoto propõe, apenas para os países em desenvolvimento (principais responsáveis pelo aquecimento), o corte de somente 5% (nos níveis de 1990) para até 2012. Brasil, Índia e China, entre outros — que, dado seu crescimento econômico vertiginoso já teria ultrapassado os EUA e que tem na base de sua matriz energética o combustível de maior poluição, que é o carvão mineral — não são obrigados a cumprir metas de redução.

Todo este debate não se refere, por óbvio, apenas a números. Aqui trata-se , em primeiro lugar, da tentativa de se compatibilizar a urgência urgentíssima na diminuição drástica de emissão de CO2 e outros GEE para a atmosfera, com o direito e a necessidade de países pobres se desenvolverem e atenderem aos direitos e necessidades de sua população.

Como atender tais necessidades sem tocar no padrão de vida e consumo das classes médias e altas tanto no Hemisfério Norte (onde são majoritárias) como no Hemisfério Sul (onde são minoritárias)? Já gastamos 25% a mais do "capital natural" da Terra e seria preciso que tivéssemos pelo menos quatro planetas Terra para que todos alcançassem o nível de vida do chamado American way of life. Uma nova “utopia” — sustentabilidade ambiental, igualdade social e desenvolvimento econômico em escala planetária — seria possível na atual configuração geopolítica mundial, onde o poder destrutivo da indústria armamentista, petrolífera e minerária materializa-se em governos como o de Bush, senhor das guerras no mundo?

É possível superar a atual crise nos marcos do sistema capitalista? Nas palavras, mais uma vez, de Foster: “Como é que isto se relaciona com as causas sociais e que soluções sociais podem ser oferecidas em resposta tornaram-se as questões mais urgentes com que a humanidade se defronta”. Este debate situa-se, portanto, no campo da chamada “Ecologia Política”, — que, na compreensão de Joan Martinez Alier, estuda “os conflitos ecológicos distributivos — isto é, os conflitos pelos recursos ou serviços ambientais, comercializados ou não”. Para ele, a Ecologia Política é “um novo campo nascido a partir dos estudos de caso locais pela Geografia e Antropologia rural, hoje estendidos aos níveis nacional e internacional”, afirma em O ecologismo dos pobres (Editora Contexto). Só a Ecologia Política, juntamente com a Economia Ecológica, para nos desvendar as causas da crise e apontar as soluções acima reclamadas por Foster.

Carlos Walter Porto-Gonçalves, um dos mais atilados ecologistas políticos da atualidade, nos situa, de forma ainda mais precisa, na atual crise planetária, quando afirma que “o desafio ambiental coloca-se no centro do debate geopolítico contemporâneo, enquanto questão territorial, na medida em que põe em questão a própria relação da sociedade com a natureza, ou melhor, a relação da humanidade, na sua diversidade, com o planeta, nas suas diferentes qualidades”. (em O desafio ambiental, Editora Record)

Para ele, há contradições profundas entre a economia capitalista e a dinâmica ambiental. A separação — “a mais radical possível”, em suas palavras — entre homens e mulheres, de um lado, e a natureza, de outro; a apropriação privada dos recursos ambientais, em que tudo é transformado em mercadoria; o “princípio da escassez”, pelo qual um “bem só tem valor econômico se é escasso”, são absolutamente contraditórios com a visão ecológico-ambientalista de riqueza natural. Vejamos, em suas próprias palavras:

"Os economistas modernos vão fundar a economia no conceito de escassez, que, paradoxalmente, é o contrário da riqueza. Tanto é assim que os bens abundantes — idéia central da riqueza — não são considerados como bens econômicos e, sim, como naturais (...) Somente à medida que água e ar se tornam escassos — com a poluição, por exemplo — é que a economia passa a se interessar em incorporá-los como bens no sentido econômico moderno, isto é, mercantil”.

Esta distinção entre riqueza natural — objetivo maior de todos os movimentos ecológicos — e riqueza material — que advém da escassez e, para deleite do sistema mercantil, transforma os bens ambientais em mercadoria — também é tratada por Foster, em outro belo texto, chamado Revolução ecológica, onde se vale do filósofo grego Epicuro, que declarava: "Quando medido pelo propósito natural da vida, a pobreza é uma grande riqueza, e a riqueza ilimitada é uma grande pobreza".

Portanto, para Foster, “o livre desenvolvimento humano, surgindo num clima de limitação e sustentabilidade naturais, é a verdadeira base da riqueza, de uma riqueza para a existência multilateral. A busca sem limites de riqueza é a fonte primária do empobrecimento e sofrimento humanos. É desnecessário dizer que tal preocupação com o bem-estar natural, em oposição a necessidades e estímulos artificiais, é a antítese da sociedade capitalista e a pré-condição de uma comunidade humana sustentável”.

Assim, é plenamente justificável afirmar que, sob o capitalismo, não há possibilidade de superação da atual crise planetária, o que nos permitiria atualizar, como quer Michel Löwy, outro grande expoente atual do Ecossocialismo, a consigna de Rosa Luxemburgo para Ecossocialismo ou barbárie.

Ora, afirmar esta contradição fundamental entre o sistema capitalista e uma nova forma de organização sócio-político-econômica fundada na sustentabilidade e justiça ambiental, na igualdade social e, também, claro, na democracia política em suas formas mais avançadas de participação popular não é suficiente, por si só, para os ecossocialistas. Diz Löwy: “É preciso começar a construir esse futuro desde já. É necessário participar de todas as lutas, inclusive das mais modestas, como, por exemplo, a de uma comunidade que se defende contra uma empresa poluidora ou a defesa de uma parte da natureza que esteja ameaçada por um projeto comercial destrutivo. É importante ir construindo a relação entre as lutas sociais e as ambientais, pois elas tendem a concordar, unidas ao redor de objetivos comuns.” (em Ecologia e socialismo)

É este campo, o das lutas sócio-ambientais, que reclama a presença dos ecossocialistas. Aqui no Brasil, e no Ceará, poderíamos listar as lutas das comunidades costeiras contra o turismo predatório e a criação de camarões em cativeiro, a resistência contra os grande projetos hidrelétricos dos atingidos por barragens, o movimento que reúne os sem-terra, agroecologistas, defensores de consumidores e ambientalistas contra a adoção de sementes transgênicas, a luta de populações locais contra a ampliação das usinas nucleares, a resistência de índios e pequenos agricultores no embate contra a transposição das águas do Rio São Francisco, a articulação dos povos da floresta — índios, quilombolas, seringueiros e ribeirinhos — contra o avanço do agronegócio do gado e da soja na Amazônia Brasileira, a luta das mulheres camponesas contra o exército verde da monocultura do eucalipto, o enfrentamento dos ecologistas e urbanistas com a especulação imobiliária nas grandes metrópoles etc.

Aqui, estamos diante do que Martinez Alier denomina de “ecologismo dos pobres” ou “ecologismo popular”, que, nas palavras do autor, tem como eixo fundamental o interesse pelo meio ambiente como “fonte de condição para a subsistência” e como fundamento ético “a demanda por justiça social (e ambiental, acrescentaria) contemporânea entre os humanos”. Esta corrente do movimento ambientalista, por lutar “contra os impactos ambientais que ameaçam os pobres, ampla maioria da população em muitos países” tem uma presença muito forte nos países do Hemisfério Sul (no antigamente denominado Terceiro Mundo).

As lutas com tais características — sócio-ambientais, do ecologismo popular — têm importância fundamental não só para os ecossocialistas, mas para o futuro do planeta. Há nelas uma resistência que, partindo da luta concreta por direitos humanos básicos de moradia, cultura, de modo de vida e de produção, e, também, pelo ambiente saudável, questiona os fundamentos não só do atual modelo econômico, mas, em última análise, investe contra as bases do próprio modo de apropriação privada do sistema capitalista, responsável pelo atual estágio de degradação do ambiente planetário. Nessas comunidades, contrapõem-se não só interesses materiais, mas formas de vida e produção antagônicas.

Portanto, neste momento (mesmo que ainda de forma não-articulada), podem se estar forjando, além das alianças sociais fundamentais para esse processo de transformação urgente e necessário — a Revolução Ecológica —, também as bases sócio-econômico-ecológico-cultural-ético-políticas de uma nova sociedade, que se qualifique para poder superar a atual crise ambiental global para se tornar, a um só tempo, ecologicamente sustentável, socialmente justa e igualitária, cultural e etnicamente diversa, e política e radicalmente democrática: a sociedade ecossocialista.

Estaremos à altura deste imenso desafio?


*João Alfredo Telles Melo é advogado, professor de Direito Ambiental e consultor de Políticas Públicas do Greenpeace


(a imagem acima retrata os Cavaleiros do Apocalipse: Fome, Guerra, Morte e Dor, como apresentada em www.gnosisonline.org/Fim_dos_Tempos/images/apocalipse1.gif )


SAIBA MAIS
www.greenpeace.org.br/transgenicos/?conteudo_id=3232&sub_campanha=0