03 janeiro 2012

NEM PÉ NEM CABEÇA

História de um dia*



Cada dia tem a sua história própria, que em seu desenrolar, está cheia de acontecimentos banais, comezinhos, vulgares ou espantosos, estranhos, incomuns, feito cada um de nós, pobres mortais. Os dias nascem, vivem e morrem com esplendor ou desprovidos de qualquer brilho, qualquer fulgor. Há claridades e há sombras envolvendo cada dia que transcorre.
 
O dia pode ser triste tanto quanto pode ser alegre — igualzinho como acontece conosco.


No fundo, eu realmente creio no que digo, somos uma sucessão de dias desde o nascimento até à morte. E nesse contínuo convívio temporal, nós fazemos os dias assim exatamente como os dias nos constroem, erguendo o frágil arcabouço de nossa humana existência. 


O meu dia sou eu e eu sou o meu dia, indissoluvelmente unidos no traçar da mesma arquitetura. A alguns pode parecer que estou elucubrando, nada mais do que uma filosofia barata, dessas que brotam aos montes nas mesas democráticas dos botequins.

No entanto, faço minha, tomada de inocente empréstimo, uma frase do grande Paulo Francis e que considero lapidar para definir como me sinto agora, escrevinhando estas mal traçadas de hoje: “Gosto que me leiam e saibam o que acho das coisas”. 
Nada mais natural para um escritor de amenidades, mesmo que não ultrapasse, coberto de pompa e glória, os limites de sua província. 

Por isso, insisto em afirmar que cada dia tem a sua história, assim como cada um de nós, que orgulhosamente nos consideramos dotados de um cérebro pensante, estando aparentemente situados no topo da cadeia zoológica, acima de todos os outros animais que, junto conosco, povoam essa cada vez mais superlotada Arca de Noé. 

Em nossa estúpida arrogância, costumamos nos esquecer de um pequeno, mas essencial detalhe, do qual somente nos lembramos quando somos obrigados a encará-lo: "tudo o que vive deve morrer, ser levado pela natureza para a eternidade". Imortais palavras de William Shakespeare.

Portanto, meus caros amigos, é humanamente imprescindível nos mantermos perenalmente conscientes do fato de nossa existencial finitude e aprender com a transitoriedade do dia a nossa própria condição de transitórios habitantes deste mundo, pois nem o universo está destinado à eternidade, por maior que seja a sua misteriosa imensidão. 


Desde o momento em que irrompemos do ventre de nossa mãe, já recebemos a irrecorrível sentença de estarmos iniciando a nossa longa ou breve caminhada para a tumba. Tal conhecimento, apesar de terrível e assustador, deveria nos tornar mais humildes, mais generosos, mais solidários com nossos companheiros de viagem terrenal. 
Um dia estamos e somos. No outro, deixamos de ser e de estar. Agora rebrilha a manhã. Mais tarde, a noite virá, sem tardança e sem falta. De igual maneira, alvorecemos e anoitecemos sem darmos importância a isso, nos comportando como se jamais fosse acontecendo conosco todos os dias.

Ao longe, uma ave passariforme, pertencente à família dos tiranídeos, o popular
Pitangus sulphuratus, mas conhecido como bem-te-vi, entoa seu cantar repetitivo, mas nem por isso menos belo, aliviando com sua melodia os meus pobres ouvidos cansados da barulheira das ruas. 

Duas ou três abelhas pousam nas humildes flores do meu minúsculo jardim, sugando seu néctar com o insuperável prazer de quem bebe uma cerveja gelada na mesa do boteco predileto. 
Agora me lembro de que sou alérgico a picadas de abelha, mas nem ligo, enquanto não sobrevoarem minha cabeça em voos rasantes, pois cada dia tem sua história e me dá vontade de contá-la tal como ela é ou transfigurando-a, usando os artifícios da imaginação. 

Talvez, ao narrar a história do dia, eu também finde por narrar um pouquinho da minha. As horas se passam e eu tenho pressa de acabar esta narrativa da jornada diária, mesmo que não tenha pé nem cabeça.

*O médico-psiquiatra Antônio Airton Machado Monte
escreve para 
o Jornal da Praia desde os anos 1980.