27 agosto 2007

QUARTA CAPITAL

Fortaleza: cidade de risco


Fortaleza é uma cidade sem lei. Sua forma urbana comprova esta assertiva com ruas e avenidas implantadas sem obediência de plantas oficiais. Assim, crescem edificações em locais impróprios ou "proibidos". Do ruído excessivo e destruição acelerada da natureza, nem se fala. É fácil constatar essas agressões na orla da cidade, no aterro de lagoas e várzeas e muitas construções irregulares. Tudo isso faz de Fortaleza uma cidade em situação de risco. O que fazer para minorar ou corrigir essas e outras irregularidades que comprometem o bem-estar e a qualidade de vida?

Na América Latina, especialmente no Brasil, as cidades cresceram muito, em proporções descomunais. No início, os especialistas denominaram de "inchaço" esse crescimento desmesurado das cidades. Não era só a forma urbana que se modificava: cidade é feita de gente. Gente que trabalha, come, bebe, estuda, se movimenta, se diverte, gera conflitos, contrai doenças. Toda a dinâmica da vida está presente nas cidades. Com uma enorme gama de problemas, a cidade espelha também a realidade da região ou país onde ela está inserida.

A falta de terra no campo para plantar, associada à ausência ou insuficiência de políticas públicas de apoio aos pequenos produtores tem ocasionado um intenso fluxo demográfico do campo para as cidades. No caso brasileiro, mais de 82% da população do País vive em cidades — e Fortaleza é uma delas. O crescimento urbano não seria problema, se as cidades fossem capazes de atender à demanda dos que partem em sua direção.

Muitos se deslocam à procura de serviços não-oferecidos no interior. Saúde, educação e comércio são os principais. Parte expressiva da população que chega à cidade, permanece nela. Mesmo não sendo devidamente acolhida, busca acomodar-se a seu modo, fazendo de sua solução mais um problema urbano. A cidade, quando equipada e organizada, oferece condições excelentes para a reprodução da vida.

Não é o caso de Fortaleza. Nossa cidade apresenta um elevado nível de carência no que tange ao atendimento de demandas coletivas e ao conforto urbano. Este quadro de carências, tão presentes em nossas cidades, cria situações delicadas — como as do eufemismo que diferencia as favelas das áreas de risco. Ambas são carentes. Acrescentem-se a prepotência dos ricos, certos de que podem fazer o que querem no uso do solo urbano, além das extensas áreas periféricas, ocupadas de forma indevida por loteamentos clandestinos, não submetidos às normas exigidas pelos órgãos competentes da gestão municipal.

Este quadro catastrófico também advém da negligência de gestores, da forte pressão de grupos corporativos e/ou da corrupção. São inúmeros os riscos a que fica submetida a população. A ciência contemporânea, face aos inúmeros problemas que afetam a sociedade, desenvolveu um campo específico denominado Gestão de Riscos. Na cidade, os riscos estão intimamente ligados às relações travadas entre sociedade e natureza.

O descontrole urbano revela o conteúdo social do crescimento da cidade. A gestão de riscos na perspectiva de identificação de problemas e adoção de políticas públicas envolve vários sujeitos sociais, especialmente técnicos, estudiosos, sociedade civil e governos. Nas cidades, os riscos podem ser provocados por catástrofes naturais, violência, colapsos econômicos, empobrecimento em demasia da população, ocupação indevida, excesso de emissão de gases tóxicos, acidentes industriais. A elaboração do Plano Diretor Urbano é um momento privilegiado para o estabelecimento de políticas públicas de gestão de riscos.

O caos urbano tem que ser encarado como socialmente produzido. Vai longe o tempo em que catástrofes e situações calamitosas eram encaradas como castigo divino. Deus, e não a sociedade, era culpado por tudo. Em seu livro Os riscos, a geógrafa francesa Yvette Veyret afirma que, na França, a origem da idéia de "riscos" data de 1775 e que a preocupação inicial foi a grande catástrofe que destruiu parte expressiva de Lisboa.

Diante dessa calamidade, o filósofo Jean-Jacques Rousseau afirmou que, se foram tantos os mortos pelo terremoto, maremoto e incêndio ocorridos naquele ano, a culpa foi dos homens e não de Deus. Foram eles que se instalaram onde a terra tremeu. Dizia ainda que, se o terremoto tivesse acontecido no deserto, não haveria vítimas.

Como não vivemos num deserto, o que fazer para reduzir os riscos em Fortaleza?


*José Borzacchiello da Silva é Doutor em Geografia e professor do Curso de Geografia da UFC-Universidade Federal do Ceará


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15 agosto 2007

COTIDIANO AMARO

Somente a lama


Se quiser fumar, eu fumo
Se quiser beber, eu bebo
Não interessa a ninguém
Oito horas da noite. Lena põe o CD no aparelho de som e sobe o volume até o máximo. A música que toca, estridente, é um velho samba-choro de fossa, cantado por Núbia Lafayette. Na calçada as pessoas passam curiosas, olhando para dentro do bar. Mas Lena não as vê. Encostada à porta do bar, acende um cigarro, dá uma longa tragada e solta a fumaça para cima. Do outro lado da rua ela pode ver o movimento dentro da igreja, os pastores já no palco, os fiéis sentados nos bancos a aguardar. Na entrada, uma moça e um rapaz convidam os transeuntes a entrar e aceitar o Senhor Jesus. Lena sorri de vê-los constrangidos pela música que toca. Então ele surge.

Bem à entrada da igreja, de paletó, a bíblia na mão. O rapaz aponta para o outro lado da rua e ele se vira para olhar. É nesse momento que seus olhares se cruzam. E é como se 10 anos não houvessem se passado. Os olhares se mantêm fixos um no outro, intercalados pelos carros que passam pela rua. Lena se delicia ao constatar a imensa surpresa nos olhos dele. Pega o copo na mesa ao lado e toma um gole de campari. Quando olha novamente, ele já voltou para o interior da igreja.

Se o meu passado foi lama
Hoje quem me difama
Viveu na lama também
"Olhai, irmãos, olhai em vossa volta e vereis a Babilônia a seduzir com seu hálito de bebida e suas promessas de luxúria!!!" A voz dele, amplificada, extrapola os limites da igreja, atravessa a rua e parece duelar com o bolero. Lena, imperturbável, toma mais um gole de seu campari. O garçom se aproxima e comenta algo sobre o volume da música mas ela não responde, permanece na mesma posição, o olhar distante. "Olhai, irmãs, e vereis as mensageiras de Satanás na porta dos bares, essas almas perdidas cuja especialidade é levar os homens junto com elas para o Inferno!!!"

Comendo da minha comida
Bebendo a mesma bebida
Respirando o mesmo ar
Ele era um garoto quando ela o conheceu. A paixão foi instantânea, mútua... e avassaladora. Semanas depois seu marido descobriu, expulsou-a de casa e ela alugou para eles um pequeno quarto no Centro, cuja cama passou a ser o templo sagrado dos seus desejos insaciáveis. E, uma vez juntos, perderam-se ainda mais. Para sustentar os vícios — que não eram poucos — enganaram, roubaram e assaltaram. Foi por amor que várias vezes ela foi buscá-lo no hospital, tantas brigas que ele arrumava pelas ruas.

Foi por amor que várias vezes, louca de ciúmes, ela bateu nas mulheres que ele insistia em cortejar descaradamente em sua presença. E foi por amor, quando já não havia mais dinheiro, quando mendigavam comida na porta dos restaurantes, quando já não havia mais alternativas, que Lena decidiu alugar o corpo na praça da Central.

E hoje, por ciúme ou por despeito
Acha-se com o direito
De querer me humilhar
Foram 8 anos de praça. Oito anos suportando o bafo de cachaça dos operários e o suor fedido dos mendigos. Oito anos vendendo por meia hora aquilo que deveria ser dele, apenas dele, durante toda a vida. No fim da noite, ela levava o arrecadado para ele, que aguardava no bar com os amigos, bebendo e jogando. Uma noite, porém, não o encontrou lá.

Procurou-o pelas ruas, mas lá ele também não estava. Quando chegou em casa, já de manhã, encontrou-o em sua cama, com outra mulher. Ela não lembra exatamente do que fez mas, nos autos, consta que os policiais, alertados pelos vizinhos, a encontraram sentada no chão, ainda segurando a faca, tranqüila e cantarolando um bolero. Ao lado dos dois corpos ensanguentados.

Quem és tu? Quem foste tu?
Não és nada
Se na vida fui errada
Tu foste errado também
Quinze anos depois, foi libertada. Quinze anos no inferno. Deixou o presídio e foi diretamente ao prédio onde antigamente morava. Depois de muito perguntar foi que soube onde ele estava. Rumou para lá. Era uma modesta igreja, que funcionava no salão do segundo andar de um prédio velho. Ela chegou, sentou-se no último banco para que ele não a reconhecesse e o escutou pregar. Ele falava de amor, fraternidade e perdão.

Era um sermão bonito, que tocava o coração. Mas o de Lena não tocou. Antes do final ela levantou-se, interrompendo o culto e, de dedo em riste na cara dele, gritou tudo que se acumulara em seu coração naqueles 15 anos. Quinze anos em que ele jamais fora visitá-la. Sequer lhe mandara um lençol limpo. Sequer lhe escrevera um mísero bilhete. Ele não conseguiu dizer nada, assustado e constrangido por ver exposto, diante dos fiéis e de sua esposa, todo o seu passado sombrio.

Quando ela fez uma pausa ele aproveitou e disse, em voz alta, para todos ouvirem, que ela estava possuída por Satanás. Nesse instante os seguranças avançaram e a seguraram, enquanto o outro pastor assumia o ritual de exorcismo. Ela gritou e se debateu, mas foi inútil. Minutos depois, vencida pelo cansaço, pelo desânimo e pela decepção, deixou-se cair no chão, chorando todas as lágrimas que em 15 anos não chorara, enquanto os fiéis louvavam a glória do Senhor Jesus.

Não compreendeste o sacrifício
Sorriste do meu suplício
Me trocando por alguém
Foram várias noites em claro, lutando contra sua própria alma dilacerada e dividida. Uma parte ainda o amava, muito, loucamente, mas a outra simplesmente não conseguia perdoá-lo. Durante 40 dias e 40 noites amor e ódio fizeram de sua alma campo de horrenda batalha, sequiosos por conquistá-la. O inferno do presídio era pouco, perto daquela eternidade inimaginável de torturas. Até que um dia ela, enfim, adormeceu sorrindo.

E dormiu o sono justo dos que finalmente compreendem aquele que talvez seja o maior dos mistérios do amor: que ele perdoa até mesmo o que não tem como ser perdoado. No outro dia ela foi ao culto, disposta a contar-lhe a boa-nova que soprava alegre em seu espírito, feito uma brisa de Verão. Mas quando chegou à porta do salão, foi enxotada pelos próprios fiéis que, ajudados pelos seguranças, levaram-na para fora e, no beco ao lado, a apedrejaram. Jogada ao chão, quase desfalecida, o sangue a cobrir-lhe a vista, ela ainda o viu aproxima-se, largar um punhado de areia sobre seu corpo e dizer: "Pra mim você já morreu".

Se eu errei, se pequei
Pouco importa
A voz do garçom chega novamente, misturando-se às lembranças. Enquanto ele comenta algo sobre clientes indo embora, 10 anos se passam rapidamente em sua mente, 10 anos em que ela apenas trabalhou e trabalhou e trabalhou, inteiramente obcecada. E o resultado está aí, na forma desse pequeno bar, que ela inaugura exatamente essa noite. Nesse instante um casal entra, observa o interior do recinto, dá meia-volta e sai, com jeito de assustados. O garçom, perdendo a paciência, diz que ali ele não trabalha mais e vai embora.

Lena dá outra tragada no cigarro e entra. Caminha até o centro do bar, entre as mesas, e toca o caixão. É um caixão branco de madeira brilhosa, suspenso sobre o pedestal de ferro. Grudada pelo lado de dentro do vidro, por onde se veria o rosto do defunto, o que se vê é uma foto desbotada, onde, sentado numa mesa de bar, um homem jovem sorri.

Se aos teus olhos estou morta
Pra mim morreste também
*Ricardo Kelmer é escritor, letrista e roteirista e mora em São Paulo, Terra — a 3.ª pedra do Sol
A música “Lama” (letra usada no texto) é de autoria de Aylce Chaves e Paulo Marques, na interpretação de Núbia Lafayette


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05 agosto 2007

MISTÉRIOS EXISTENCIAIS

Sobre o "cuidado de si"


O filósofo e professor francês Michel Foucault (15/10/26 — 26/06/84, foto) legou-nos uma das mais belas profecias sobre o "cuidado de si", compondo uma ética política sobre a história da sexualidade — incluída a morte. A problemática da governamentalidade fôra retomada em seu Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1984): "Gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso que devo pronunciar hoje, e nos que deverei pronunciar aqui, talvez durante 10 anos".

Foucault veio a falecer em 25 de junho de 1984, quando seu estado de saúde não mais lhe permitia prepará-los. Salvo engano, nenhum sistema de pensamento obteve, em tão pouco tempo, repercussão tão ampla e evidente, do ponto de vista da mudança de racionalidade simbólica, a partir de temas como a crítica da razão governamental, a analítica do poder, sobre as relações "espaço-tempo" e "poder-saber", a "estética da existência" e o "experimento moral", e mesmo entre o "império do olhar" e a "arte de ver". É também impossível esquecer a tese segundo a qual "a visibilidade é uma armadilha", numa sociedade que "canceriza" a vista através do poder disciplinar.

O estudo dedicado ao "cuidado de si" teve como referência Alcebíades (451-404 a.C.) — general grego retratado em 1865 pelo pintor, desenhista e escritor brasileiro Pedro Américo (1843-1905). Nele, as questões dizem respeito ao "cuidado de si" com a política, com a pedagogia e com o conhecimento de si próprio. Sócrates recomendava a Alcebíades que aproveitasse a sua juventude para ocupar-se de si mesmo, pois "com 50 anos, seria tarde demais". Isso, numa relação que diz respeito talvez ao "enamoramento" (na acepção do sociólogo italiano Francesco Alberoni) e que não pode "ocupar-se de si" sem a ajuda do Outro.

Contudo, é no discurso dedicado à formação da "hermenêutica de si" (1981-1982) que Foucault pretendeu estudá-lo "não somente em suas formulações teóricas, mas analisá-lo em relação ao conjunto de práticas que tiveram uma grande importância na Antigüidade clássica ou tardia". Certamente porque, para ele, estes princípios de "ocupar-se de si", de "cuidar-se a si mesmo" estão associados.

O exercício da morte, tal como evocado pelo filósofo estóico Sêneca (Lucius Annaeus Seneca, nascido em Córdoba, Espanha, em 4 a.C.), consiste em viver a longa duração da vida como se esta fosse tão curta quanto um dia e viver cada dia como se a vida inteira coubesse nele: todas as manhãs, deve-se estar na infância da vida, mas deve-se viver toda a duração do dia como se a noite fosse o momento da morte. "Na hora de ir dormir", afirma Sêneca em sua Carta 12, "digamos com alegria e com um sorriso: 'eu vivi'."

Isto quer dizer que, através dos exercícios de abstinência e de domínio que constituem a askesis (ascese, a disciplina de contenção da luxúria) necessária, o lugar atribuído ao conhecimento de si torna-se mais importante: a tarefa de se pôr à prova, de se examinar, de controlar-se numa série de exercícios bem definidos, coloca-nos a questão da verdade — da verdade do que se é, do que se faz e do que se é capaz de fazer — no cerne da constituição do sujeito moral.

E, finalmente, o ponto de chegada dessa elaboração é, ainda e sempre, definido pela soberania do indivíduo sobre si mesmo, embora tal soberania amplie-se numa experiência onde a relação consigo mesmo assume a forma, não somente de uma dominação, "mas de um gozo sem desejo e sem perturbação".

Neste lento desenvolvimento da arte de viver sob o signo do "cuidado de si", os dois primeiros séculos da época imperial podem ser considerados como o ápice de uma curva, uma espécie de Idade de Ouro na cultura de si — sendo subentendido, evidentemente, que esse fenômeno só concerne aos grupos sociais, bem limitados em número, que eram portadores de cultura e para os quais uma techne tou biou (uma "arte da vida") podia ter um sentido e uma realidade — ou seja, "aqueles que querem salvar-se devem viver cuidando-se sem cessar".

Ademais, é conhecida a amplitude tomada em Sêneca pelo tema da aplicação a si próprio: é para consagrar-se a esta que é preciso renunciar às outras ocupações. O indivíduo poderia, desse modo, tornar-se disponível para si próprio. Sêneca dispõe de todo um vocabulário para designar as diferentes formas que o cuidado de si deve tomar e a pressa com a qual se procura unir-se a si mesmo. "Apressa-te, pois, para o objetivo, dize adeus às esperanças vãs, acorre em tua própria ajuda se te lembras de ti mesmo, enquanto ainda é possível".

Portanto, é possível dizer que não há idade para se ocupar consigo. Dizia Epicuro (Epicuro de Samos, filósofo grego do período helenístico que propunha uma vida de contínuo prazer como chave para a felicidade): "Nunca é demasiado cedo nem demasiado tarde para ocupar-se com a própria alma". De sorte que devem filosofar o jovem e o velho — este para que, ao envelhecer, seja jovem em bens pela gratidão ao que foi, e o outro para que, jovem, seja ao mesmo tempo ancião pela ausência de temor pelo futuro.

"Aprender a viver a vida inteira" era um aforismo citado por Sêneca que nos convida a transformar a existência numa espécie de exercício permanente. E mesmo que seja bom começar cedo, é importante jamais relaxar, mas há uma advertência: "É preciso tempo para isso". É um dos grandes problemas dessa cultura de si o fixar, no decorrer do dia ou da vida, a parte que convém consagrar-lhe. Recorre-se a muitas fórmulas diversas: podem-se reservar, à noite ou de manhã, alguns momentos de recolhimento para o exame daquilo que se fez, para a memorização de certos princípios úteis, para o exame do dia transcorrido.

O exame matinal e vesperal dos pitagóricos encontra-se, sem dúvida com conteúdos diferentes, nos estóicos. Sêneca, Epicteto, Marco Aurélio* fazem referência a esses momentos que se devem consagrar ao "voltar-se para si mesmo". Pode-se também interromper, de tempos em tempos, as próprias atividades ordinárias e fazer um desses retiros que Musonius (Musonius Rufus, filosófo estóico romano que viveu no Primeiro Século), dentre outros, recomendava vivamente: eles permitem ficar face a face consigo mesmo, recolher o próprio passado, colocar diante de si o conjunto da vida transcorrida e familiarizar-se, através da leitura, com os preceitos e os exemplos nos quais se quer inspirar e encontrar, graças a uma vida examinada, os princípios essenciais de uma conduta racional.

É possível ainda, no meio ou no fim da própria carreira, livrar-se de suas diversas atividades e, aproveitando esse declínio da idade onde os desejos ficam aparentemente apaziguados, consagrar-se inteiramente, como Sêneca, ao trabalho filosófico (ou, como Spurima, belo jovem romano citado no Filocolo de Giovanni Boccaccio que desfigura a própria face para não ser conspurcado pelo mundo) na calma de uma existência agradável, "à posse de si próprio".

Esse tempo não é vazio: ele é povoado por exercícios, por tarefas práticas, atividades diversas. Ocupar-se de si não é uma sinecura. Existem os cuidados com o corpo, os regimes de saúde, os exercícios físicos sem excesso, a satisfação — tão medida quanto possível —, as necessidades. Existem ainda as meditações, as leituras, as anotações que se tomam sobre livros ou conversações ouvidas — e que mais tarde serão relidas —, a rememoração das verdades que já se sabem, mas das quais convém apropriar-se ainda melhor.

Marco Aurélio fornece, assim, um exemplo de "anacorese em si próprio": trata-se de um longo trabalho de reativação dos princípios gerais e de argumentos racionais que persuadem a não deixar-se irritar com os outros nem com os acidentes, nem tampouco com as coisas. Tem-se aqui um dos pontos mais importantes dessa atividade consagrada a si mesmo, que não constitui um exercício da solidão, mas sim uma verdadeira prática social. E isso, em vários sentidos.

Mas toda essa aplicação a si não possuía como único suporte social a existência das escolas, do ensino e dos profissionais da direção da alma. Tal iniciativa encontrava, facilmente, seu apoio em todo o feixe de relações habituais de parentesco, de amizade ou de obrigação. Quando, no exercício do cuidado de si, faz-se apelo a um Outro, o qual adivinha-se que possui aptidão para dirigir e para aconselhar, faz-se uso de um direito. E é também um dever que se realiza quando se proporciona ajuda a um Outro — ou quando se recebem, com gratidão, as lições que ele nos pode dar.

Acontece também do jogo entre os cuidados de si e a ajuda do Outro inserir-se em relações preexistentes, às quais dá uma nova coloração e um calor maior. O cuidado de si — ou os cuidados que se tem com o cuidado que os outros devem ter consigo mesmos — aparece então como uma intensificação das relações sociais. Neste particular, Sêneca dedica um consolo à sua mãe no momento em que ele próprio está no exílio, para ajudá-la a suportar essa infelicidade atual e, talvez, mais tarde, infortúnios maiores.

O "cuidado de si" aparece, portanto, intrinsecamente ligado a uma espécie de "serviço da alma" que comporta a possibilidade de um jogo de trocas com o Outro e de um sistema de obrigações recíprocas.


*Ubiracy de Souza Braga é sociólogo, cientista político e professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE)


*Marco Aurélio Antonino (121-180) pertenceu a uma família de aristocratas e muito cedo perdeu os pais. Foi então adotado pelo tio, Aurélio Antonino, que mais tarde tornou-se imperador, nomeando-o seu sucessor. Aos 11 anos, conheceu o estoicismo e adotou hábitos de vida austera. Após sua formação, passou a colaborar intimamente com o imperador, seu pai adotivo, ocupando o cargo de cônsul por três vezes. Em 161, Aurélio Antonino morre e Marco Aurélio torna-se imperador.

O governo de Marco Aurélio, que se estendeu por quase 20 anos (até sua morte), foi perturbado por guerras sangrentas e prolongadas, com as conseqüentes dificuldades internas. Ele conseguiu enfrentar todas as dificuldades, tendo sido excelente guerreiro e administrador e, ao mesmo tempo, humanizando profundamente o exercício do poder. Nos poucos momentos livres que lhe permitiam os encargos de governo, recolhia-se à reflexão filosófica e escrevia seus pensamentos em língua grega. Com isso, tornou-se o terceiro e último expoente do estoicismo romano.

O conteúdo de suas Meditações (como ficaram conhecidos seus pensamentos), é a filosofia estóica, mas um estoicismo distante das doutrinas de Zenão (Zenão de Eléia — 495 a.C.-430 a.C. — nasceu em Eléia, Itália. Discípulo de Parmênides, defendeu de modo apaixonado a filosofia do mestre. Seu método consistia na elaboração de paradoxos. Deste modo, não pretendia refutar diretamente as teses que combatia, mas sim mostrar os absurdos nelas expressos e, portanto, sua falsidade. Acredita-se que Zenão tenha criado cerca de 40 destes paradoxos — todos contra a multiplicidade, a divisibilidade e o movimento, que nada mais são que ilusões, segundo a escola eleática. Aristóteles o considera o criador da dialética).

As especulações físicas e lógicas cedem lugar ao caráter prático dos romanos e ao aconselhamento moral. Em Marco Aurélio, como também nas máximas de Epicteto, a questão central da filosofia é o problema de como se deve encarar a vida para que se possa viver bem. Este tema é tratado com grande esforço e interesse por Marco Aurélio, homem religioso e pouco interessado na investigação científica. Em seus pensamentos, são bem visíveis as tendências ecléticas. Ele não hesita em acolher posições de sabedoria, que vêm até mesmo de Epicuro.

Uma das características que mais impressiona o leitor de suas Meditações é a insistência com a qual é tematizada e afirmada a "caducidade" das coisas: "Quão rapidamente, num segundo, desvanecem todas as coisas, os corpos no espaço, e a memória desses no tempo! E o que são todas as coisas sensíveis e, especialmente, as que nos seduzem com a voluptuosidade ou nos amedrontam com a dor ou são exaltadas pelos homens! Quão vis são, desprezíveis, horríveis, corrompidas, mortas!".

Marco Aurélio também rompe com o antigo Pórtico — a palavra estóico vem do grego stoá, que significa pórtico — quando distingue no homem o corpo, que é carne, a alma, que é sopro ou pneuma (ar) e, superior à própria alma, o intelecto ou mente. Enquanto o antigo Pórtico identificava o princípio dirigente do homem com a parte mais elevada da alma, Marco Aurélio o põe fora da alma e identifica-o com o intelecto. Por essa razão, o estoicismo de Marco Aurélio freqüentemente apresenta discrepância em relação às suas origens gregas. Por certo, a verdadeira chave para a compreensão das oscilações de Marco Aurélio deve ser procurada menos em suas características psicológicas do que nas circunstâncias históricas em que viveu. E, embora sua colaboração tenha sido de grande importância, ele não chegou a ser um pensador original.


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(Cena de 300, filme inspirado na graphic novel épica do norte-americano Frank Miller que aborda romanceadamente a estóica resistência de Esparta às hostes do imperador persa Xerxes, aqui derramando-se sobre o abismo)

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