28 setembro 2016

PROJETO DE UNIVERSALIDADE


Reflexões sobre o tema "sertão"*




Nos sertões, deu-se o encontro/desencontro de mundos; nações, povos e culturas se enfrentaram e se misturaram. Os africanos e ameríndios (escravizados), os senhores colonizadores católicos portugueses e ainda os aventureiros chegados de toda a Europa (cristãos, cristãos novos, judeus, calvinistas, mouros, ciganos...) fizeram o caldo étnico cultural formador da brasilidade. 

A cultura do sertão nordestino é formada pelas principais vertentes das culturas ocidentais/orientais que viriam mesclar-se e sincretizar-se com a imensa diversidade das culturas indígenas e afro-brasileiras. 

O antropólogo Darcy Ribeiro refere-se à cultura nascida desse enfrentamento como sendo uma “cultura herdeira de todas as taras e talentos da humanidade”, grande contribuição de originalidade do Brasil ao mundo.

A compreensão da palavra sertão é bem vasta. Os primeiros colonizadores disseram: "desertão", "matão", "certão", "sartagem", "sartaem", "sartan", "sartãa", "sartan", "sertã" (feminino de "sertão"?), "sartã"... Como quem diz Deus e diz satã. 

O sertão é terra dos confins, lá pra dentro, bem fundo, onde moram os mitos, as utopias... E as feras.

Não existe um Sertão apenas, mas tantos sertões quanto as almas dos homens. Guimarães Rosa abriu todas as porteiras do sertão e o estendeu até as areias do Saara, até as estepes russas, até os desertões da Andaluzia, até o deserto de Gobi, até o “dentro da alma”, onde a memória se junta com a imaginação do futuro. 

Estava fundado o Grande Sertão: Veredas: “Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é o mais forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado”. 

O sertão nasce assim, na alma e também na carne, no sangue. Antes de ser o lugar da morte, o sertão é gênese – o território do sonho. O País de São Saruê que ainda começa a ser imaginado. A Bandeira do Divino bem à frente, tremulando.

O sertão atravessa os séculos, as raças, as nações, os regimes e as ideologias; funde culturas e nacionalidades, reinventa o arcaico em contemporâneo, porque só sabe fertilizar-se e constrói-se no presente, projetando-se sempre para o futuro. 

O homem do sertão brasileiro, quando mergulha no abismo do ser, emerge como homem novo e reinventa-se em um novo projeto de universalidade.

É por isso que a maioria das mudanças mais profundas, radicais e ousadas das artes brasileiras andaram bebendo nos inesgotáveis poços das culturas dos sertões, apesar das secas. 

Os acervos das culturas, das artes e das literaturas dos sertões são multiculturais, multirraciais e transacionais, são heranças que se constroem em direção ao futuro.


Quando falamos em "sertão", por qual sertão perguntamos? Pelo do escritor urbano que o reinventa sob a fluidez e as artimanhas da memória? Pelo do vaqueiro? O do camponês? O do homem migrante nos grandes centros urbanos? O sertão da África? O sertão da Amazônia? O sertão dos pampas? O sertão do Magreb? São muitos os sertões do mundo. 
 Com certeza, falamos do sertão imemorial, que atravessa os tempos, desde a pré-história até a contemporaneidade. O sertão “sem-porteiras”, que engoliu todos os outros sertões. 
Sertão de secas e de invernadas, de misérias e de farturas, do diabo e de Deus, de trevas e de luz. O sertão profundo das polifonias perdidas, dos segredos indecifráveis, de orientes mágicos, de romanidades tardias, de desertos onde os profetas do Velho Testamento ainda pregam as suas iras e profecias. 
O sertão da antiga Grécia, com seus rapsodos e tragédias. O sertão de areias, onde se levantou Maomé com suas tribos e marchou sobre o norte da África, até dominar o Mediterrâneo e conquistar a Península Ibérica; com seus guerreiros, seus marinheiros, seus astrólogos, seus filósofos, seus músicos, suas dançarinas, seus poetas, seus cantores, seus pastores aboiadores. 
O sertão de Santo Antão, o anacoreta do deserto egípcio, atentado pelo demônio. O sertão de São Jorge da Capadócia, todo vestido de couro e lança em riste para lutar contra os dragões de todas as maldades. 
O sertão de Nossa Senhora do Belo Amor, dos romeiros de Juazeiro do Norte, do Padre Ibiapina, do Padre Cícero e dos beatos Antônio Conselheiro e José Lourenço... O sertão de todos os santos do povo e também dos seus demônios: Lucas da Feira, Corisco e Lampião... 
Também dos cavaleiros andantes e defensores da honra: Jesuíno Brilhante e Capitão Lamarca... O sertão cristão, sefardita, moçárabe, mouro, messiânico, tocado pelas profecias da Terceira Era do Espírito Santo, pelo sebastianismo e pelo V Império profetizado pelo Padre Antonio Vieira. 
Quiçá do sertão Tapuia, de língua travada, ou Tupi-Guarani de língua Nheengatu, de festas do caju e do Toré. O sertão nascido da alquimia de todas as transmutações, até à Pedra Filosofal da sabedoria que se esconde na alma. 
Um sertão transbarroco e transnacional, em suas etnias transmutadas e símbolos cotidianamente revitalizados e ressignificados nas obras dos grandes artistas brasileiros.
Sei que existem os preconceitos daqueles que veem o sertão como o lugar do atraso. 

Todos esses preconceitos, no entanto, não valem um grão do pó da areia que o vento sopra no sertão. Muitas vezes esse grão de areia, nas asas do vento, atravessa o Atlântico, vindo do Saara (outro sertão), só para lembrar-nos que somos herdeiros do mundo. 

Os sertões são múltiplos, arcaicos e contemporâneos, regionais e universais, ao mesmo tempo. Em sendo lugar, o sertão é onde o homem encontra a alma. 

*Rosemberg Cariry é cineasta e escritor.
(conteúdo publicado em www.opovo.com.br)
(imagem por Rosângela Borges em www.artmajeur.com)

15 setembro 2016

"VAZIO" BUDISTA


Desapegue e terá o universo*



O jovem Keisuke Matsumoto resolveu escrever um livro sobre os hábitos de faxina diária dos monges e virou um autor de sucesso. Seu Manual de Limpeza de um Monge Budista, publicado no Brasil pela Editora Planeta, entrou na lista dos mais vendidos no Japão, na Espanha e na Itália.

Foi um dos livros mais delicados que li nos últimos tempos. Parece auto-ajuda, mas chega perto da poesia. Sua força está concentrada na crença budista de que fazer faxina remove a sujeira do espírito.

A orelha do livro já anuncia: "Um dos discípulos de Buda encontrou o nirvana enquanto estava varrendo". Simples e profundo, Keisuke Matsumoto explica aos poucos a relação entre o ambiente e o espírito.

Por exemplo: ele aconselha "lavar imediatamente cada louça suja", da mesma forma que devemos expulsar todo pensamento ruim assim que ele chega, para que em nós não encontre morada.

Acumular louça na pia e coisas por arrumar na casa só torna as tarefas mais pesadas pelo volume de trabalho e perturba o espírito. A rotina de limpeza dos monges é de um pouco por dia. “Cada segundo de faxina é de pleno significado”, ele diz. E justifica, com tranquilidade, página por página.

O que impressiona nesse livro tão delicado é que ele nos leva a um estado de paz de espírito ao longo da leitura. Quase uma meditação. Logo no começo, ele sugere que as janelas sejam sempre abertas pela manhã para que o ar puro limpe a casa com o frescor de cada estação.

A descrição é tão bonita que é quase possível sentir uma lufada de vento japonês no rosto. A relação com os objetos ao redor também merece atenção do autor. O minimalismo é levado a sério.

Ele sugere que tenhamos apenas “objetos de qualidade excelente feitos mediante tempo e esforço. Ao tocar algo assim, toda energia concentrada na sua manufatura percorre o corpo e chega ao coração”.

Lembrei imediatamente das rendas, do linho e dos bordados, das peças feitas com a força de uma tradição e que já estão deixando de existir, pouco a pouco, porque não cabem mais na pressa da vida ocidental.

O minimalismo que ele prega está centrado na crença de que precisamos de muito pouco para viver. Uma casa com menos objetos é mais fácil de limpar. Uma vida com excessos torna-se mais pesada. “Desapegue e terá o universo. É o 'vazio' budista”.

Há tempos, venho pensando no resultado de sermos uma sociedade com tantas marcas de um regime escravocrata, acostumados a pensar nos serviços de casa como algo a ser feito somente por empregadas domésticas, como se limpar a própria casa diminuísse o valor de alguém.

Associar a limpeza do ambiente com a cura do espírito faz absoluto sentido. Por muitas vezes, tive inspiração para novos livros enquanto lavava louça ou fazia outra atividade doméstica.

O efeito desse texto é quase literário porque tem o poder de transporte para uma vida em outro ritmo, tão diferente da nossa correria habitual, acumulando obrigações, objetos, cansaço. Assim, o Manual de Limpeza de um Monge Budista é, sobretudo, uma pausa.

E uma forma de enxergar a rotina diária como possibilidade de meditação ou de iluminação, a depender da alma de cada um.


*Socorro Acioli é escritora. Conteúdo publicado em www.opovo.com.br