29 abril 2010

NÃO VALE UM CIBAZOL

Desprezada cidadania*



Abri a janela de par em par, com uma solenidade exuberante e magnificente. E foi então, nesse instante exato, preciso, que se abateu sobre mim uma clareza estonteante e assustadora a respeito de tudo, uma clarividente lucidez que se poderia chamar de obscena.

Afinal, quase sessenta e um anos no mundo, quase sessenta e um anos de batente, de janela, de praia. Se eu ainda não conseguisse sacar nada da vida que vivo e que vivemos, eu nada mais seria do que o mais profundo poço de obtusidade.

Porém, claro que aprendi alguma coisa sobre mim e sobre a vida. Ah, como difícil é, estonteante até, desesperador (posso dizer) a gente sobreviver em um valhacouto continental de saqueadores eméritos do dinheiro público, de bucaneiros de nossa desprezada cidadania.

Também, o que desejar de um país, de uma nação em que a vida de um cidadão não vale um velho Cibazol? O povo brasileiro me parece sofrer de uma vocação inenarrável e retumbante para ser órfão ou vítima do poder em todas as esferas, sejam oficiais ou marginais.

Nesse ínterim, só para não perder o embalo, sempre é bom lembrar que o funcionário público, de um modo geral, vai virando um bicho de uma espécie em extinção, coitadinho. Sim, por que hei de negar uma verdade irrefutável e dolorosa?

O funcionalismo público, de calças na mão, o cinto apertado até o último buraco, de corda no pescoço, ajoelhado num tamborete perneta e se afogando de remorsos mil e tardios por não haver se rebelado a tempo.

Cada dia mais me convenço de que não existe nada no mundo comparável ao desamparo do cidadão a esta triste altura, embora uma ciranda de lantejoulas enfeitada, engalanada. O povo é o pior cego, o que não quer ver nada além de suas desgraças, de suas ilusões perdidas e traídas.

Ponho Miles Davis na vitrola, acendo um cigarro imaginário e chego à conclusão de que o jazz possui a milagrosa capacidade de atenuar-me as tensões do corpo e da mente, de suavizar as minhas angústias ou de aguçá-las de um modo insuportavelmente belo, belo.

Fico olhando velhas fotografias amareladas de meus desdobramentos celulares e descubro que meus filhos cresceram rápido demais, como todos os filhos, e me fazem perguntas demais sobre como fazer para viver num país melhor, sem a saída do exílio.

E cada vez mais descubro que menos vou sabendo respondê-las.


*Médico psiquiatra e escritor, Airton Monte é cronista de sua época, um colunista do Jornal da Praia desde a década de 1980. O Cibazol, antigo remédio para aliviar a dor, foi retirado de circulação pelo Ministério da Saúde



06 abril 2010

MODA SUSTENTÁVEL

Têxteis com origem ética*



Sabe aquela camiseta de algodão natural guardada no seu armário, que traz uma mensagem amigável, insígnia de banda de rock ou opinião política?

Na verdade, essa camiseta pode ser a roupa mais ambientalmente tóxica que você possui. Só para começar, lembremo-nos de que, no Brasil, são produzidas cerca de 450 milhões de peças de camisetas por ano.

De acordo com um estudo do IISD-Instituto Internacional para o Desenvolvimento Sustentável, para confeccionar na China uma camiseta de 250 gramas utiliza-se, em média, 160 gramas de agrotóxicos.

Uma pesquisa do Departamento Agrícola dos Estados Unidos aponta ainda que cerca de um terço dos pesticidas e fertilizantes produzidos no mundo são pulverizados sobre o algodão.

A OMS-Organização Mundial de Saúde afirma que 25% dos inseticidas produzidos mundialmente são utilizados na plantação do algodão -- e quase metade deles são extremamente tóxicos.

O Aldicarbe (ou Temik 150) é, por exemplo, o segundo pesticida mais utilizado na produção de algodão mundial. Apenas uma gota dele, absorvida pela pele, é suficiente para matar um adulto.

Um levantamento do IISD, realizado em conjunto com o Centro para o Desenvolvimento Sustentável e o Meio Ambiente da Academia Chinesa das Ciências Sociais de Beijing, revela que o algodão está no topo da lista de produtos que precisam de controle ambiental.

Com isso, chegamos enfim a concluir que a água e os agrotóxicos utilizados no cultivo de algodão, os resíduos deixados nos rios e os restos despejados em aterros fazem com que o ciclo de vida da sua humilde camiseta de algodão tenha deixado um gigantesco rastro ecológico.

É por isso que celebridades, como o compositor/cantor Jason Mraz, apareceram na entrega dos Grammys usando ternos de plástico reciclado. Mas o movimento de "ecologização" da indústria da moda levanta uma pergunta ainda mais relevante: o que seria a moda sustentável?

Para encontrar respostas coerentes e práticas, é necessária a opinião de profissionais do lado menos atraente da indústria da moda, como pesquisadores ambientais e engenheiros de produção especializados na fabricação de tecidos, envolvidos em estudos de impacto ambiental.

No desenvolvimento de uma peça de roupa verdadeiramente orgânica, que não seja financeiramente exorbitante, designers, estilistas e consumidores de moda precisam trabalhar em conjunto com profissionais especializados em gestão de sustentabilidade.

No entanto, para ser qualificado como orgânico, o algodão ou lã devem passar por inspeções e processos sofisticados, de forma a que não sejam contaminados por produtos químicos e substâncias tóxicas.

Porém, a indústria têxtil mundial ainda encontra grande dificuldade para definir os padrões de qualidade mínimos necessários à criação de um produto realmente orgânico e sustentável.

No Brasil, diversos produtores da Paraíba já trabalham com a IFOAM-International Federation of Organic Agriculture Movements, visando atender à legislação referente a produtos orgânicos da Comunidade Européia e dos Estados Unidos.

Em 2007, cerca de 7,5 mil hectares nos Estados Unidos foram dedicados à safra de algodão orgânico. E programas como o “North American Organic Fiber Processing Standards” já estão se popularizando junto à indústria da moda.

De acordo com projeções do site DataMonitor, o mercado varejista de vestuário no bloco BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) deverá chegar a US$ 253,6 bilhões em 2013. Por ser o principal produtor e importador de algodão cru e o maior exportador de tecidos de algodão e vestuário acabado do mundo, a indústria têxtil chinesa tem grandes interesses neste novo cenário.

Sendo assim, a China já está se organizando para estabelecer os requisitos necessários à obtenção de escala na cadeia de produção de roupas orgânicas. Vale lembrar que sua cadeia produtiva já passou por problemas que precisam antes ser resolvidos.

O avanço do vasto deserto de Taklimakan, por exemplo, cujas dunas engoliram cidades inteiras, apavorando os moradores dos subúrbios de Beijing, tem sido associado à produção industrial do algodão em larga escala na província árida de Xinjiang ocidental.

Para além da indústria têxtil, o universo da moda também está se mobilizando. No mês passado, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, em Genebra, Suíça, realizou a EcoChic: um desfile de moda sustentável, em que conhecidos designers criaram peças a partir de fibras naturais fabricadas de forma mais sustentável.

Em fevereiro de 2010, na Fashion Week de Londres, a exposição “Estethica” foi dedicada à moda ecologicamente sustentável. Em março de 2010, o Fashion Institute of Technology, em Nova York, uniu forças com a Universidade de Delaware e com a escola Parsons de design para montar uma exposição de moda sustentável, intitulada "Passion for Sustainable Fashion", na qual os estudantes criaram roupas com matérias de origem ética e matérias-primas ecologicamente neutras.

Outra alternativa seria o processo de reaproveitamento de produtos descartados, como o Upcycling, do qual o terno de Jason Mraz é um bom exemplar. O problema é descobrir como fazer o Upcycling em escala comercial.

Em tudo isso, o mais importante é a conscientização de que "sustentabilidade" não se trata de modismos passageiros e sim de um assunto que deve ser abordado de forma séria e coerente.

*Carolina Cabral Murphy é pesquisadora da Columbia University e fundadora da MicroEmpowering.Org, sediada em Nova York (EUA)

**Imagem do Taklimakan -- o "deserto de onde não se volta" --, postada na web por Lilian Hellmann: 350 mil km2 de areias escaldantes