20 abril 2009

ATÉ QUE NÃO ME SEJA MAIS POSSÍVEL

Bombas na tevê


Hoje, a tarde é gris. Grisalhas são as nuvens parcas, pairando sobre minha cabeça como se fossem chover. Na cozinha, a geladeira é um clarão azul, recém-pintada, contrastando com o agressivo branco dos azulejos das paredes.

Em ouro líquido derrama-se o refresco de manga no copo prateado de alumínio. Meu cachorro resplandece de um retumbante negro e amarelo. E assim de loucos desejos, feito cores variegadas, sou feito à minha própria imagem e semelhança.

O mar tem a cor da imaginação dos olhos de quem o vê, menos a cor do desespero. Já a minha tristeza é avermelhada como as brasas do fogão de lenha de minha avó, no tempo das grandes inocências. Minha alegria é um arco-íris de uma timidez sem par.

Acendo um cigarro, penso na vida que estou levando e tudo no mundo volta ao normal. Sou um cara teimoso e, como diria Otto Lara Resende, sei que intelectual no Brasil não passa de um bostinha e o saber torna-se uma condenação ao ostracismo.

No Brasil, somente os cretinos fundamentais são considerados felizes e a mediocridade se transforma numa milagrosa bênção. Algumas pessoas odeiam de morte os intelectuais, mas se não lhes custasse demasiado caro, decerto possuiriam um de estimação, pra fazer bonito na sala de visitas quando dessem uma festa para puxar o saco do patrão ou do cacique político.

Meus raros dissidentes afetivos dizem de mim que sou um poço sem fundo de vaidade indevida. Vai ver estão todos absolutamente certos ou esquecem que sou míope e míope é mesmo uma gentinha que não se enxerga.

As bombas terroristas explodem vez em quando na tevê e eu vejo, banhada em sangue, a pomba da paz crucificada em minha janela. Tenho tanta coisa séria para pensar hoje, porém só consigo pensar em mim mesmo — e em como a existência cotidiana anda difícil nesses tempos tão bicudos.

Aporrinhações, aperreios, aflições, falta de dinheiro e até mesmo de um pouco de esperança. Portanto, se faz necessário imediatamente uma pitada de bom-humor, senão onde me restaria um pingo de fugidia esperança?

Esperança. Por vezes, me pergunto se não seria mais sadio riscar esta palavra do meu dicionário. Como sou teimoso, insisto em acreditar nela até que não me seja mais possível acreditar em mais nada.

*Airton Monte é psiquiatra, escritor e colunista do Jornal da Praia há pelo menos 20 anos




15 abril 2009

LEITURA EMBRIAGANTE

Relatório alcoólico


Amigo(a): Sentimos sua falta na festa de lançamento do Hic!stórias - Os maiores porres da história da Humanidade de Ulisses Tavares, na Livraria da Villa semana passada. Mas a festa continua e você pode participar sem sair de casa — viva o mundo web!

"Dia 17 de abril, sexta-feira, tem vídeochat com o autor Ulisses Tavares no site do IG, das 17 às 18 horas. Participe, pergunte, provoque!", informa Nathália Lippi, a assistente editorial do escritor.

Voltando ao livro, nele o(a) leitor(a) vai conhecer o mais completo, maluco, divertido, humano e bizarro relatório sobre os bêbados e as bebedeiras que marcaram época: imagine só toda a humanidade duas doses acima do normal, com personagens reais, famosos e históricos?!?

Trata-se de uma embriagante viagem, onde qualquer fato não é mera coincidência. Tem macacos se embriagando com frutas, patriarca bíblico dormindo bêbado com as filhas, conquistador e guerreiro tomando todas e matando até seu melhor amigo, índios comendo carne humana com cachaça, papas em orgias e porres homéricos, uma guerra fratricida por um barril de pinga, artistas de Hollywood bebendo de cair na sarjeta, escritores alucinados por bebida e sexo, religiosos se entregando ao álcool e perdendo o controle, presidentes bebuns de carteirinha, milionária bebendo a fortuna até a última gota, cantoras apanhando de maridos bebuns, americano construíndo um império com doses de martini, serial killers curtindo bebedeiras mortais, receitas para se curar ou morrer com gim e reis, rainhas, ministros de Estado, senhores e senhoras envolvidos em escândalos alcóolicos.

É uma extensa antropologia dos botecos e tudo o mais que ninguém ainda contou, nem em delirium tremens. Se não beber, não leia. Ou não: não dá mesmo para confiar em quem não bebe. Ou dá? Leia o depoimento:

"Parei uma semana, depois de uma duríssima negociação com o médico, e esse texto quase não sai. Tentei cerveja sem álcool, para ver se enganava os neurônios que me restam... e nada feito. É, amigos, não foi fácil para este escriba boêmio que escreve socialmente.

Ao fim da eternidade dos sete dias, a água se fez vinho, e eu reli Hic!stórias sob tragos divinos, como um pecador bêbado de Sodoma ou de Gomorra. Sim, amigos, as grandes saideiras começam lá no Antigo Testamento, como nos conta o confiabilíssimo Ulisses Tavares nesta bíblia sagrada dos bebedores.

Ora, ora, se Oxalá estava bêbado ao criar os homens — um dos tantos belos achados deste livro — por que devemos estar sóbrios a essa altura? Assim cambaleia a 'humanidadis', como diria Mussum, ilustre personagem da galeria bêbada aqui retratada.

Na minha leitura sóbria, muita coisa importante passou batido, confesso. Na leitura embriagada, amigos, foi um bacanal dos sentidos. Era como se eu estivesse viajando pelas tabernas do mundo inteiro.

Uma bebedeira ali com o velho Hemingway, um porre no coelho do Simenon... Com Edgar Allan Poe foi um delírio, até o gato preto e mal-assombrado saiu de dentro das paredes e entornou uma genebra.

Aqui no grande bar universal de Ulisses Tavares, o chegado bebe com os vivos e os mortos, dá um rolê na velha Lapa com Madame Satã, treina a arte de chutar tampinhas com João Antônio e vê os cães do infortúnio a lamber a lua na sarjeta com os grandes poetas.

Ih, já ia me esquecendo de que as mulheres também bebem (que porco chauvinista!): como esquecer a alma engarrafada de Billie Holiday, como esquecer que Luz Del Fuego não carecia beber para tirar a roupa, mas uma vez despida bebia todas?", resenhou (antes ou depois da ressaca?) o jornalista cabeça-chata Xico Sá.


SABEMOS O QUE COLHER

Ao conhecer as sementes


Caminhando pelos campos do passado distante, encontrei alguém esperando por mim. Era um homem que dormia à beira de um riacho, confortavelmente deitado sobre a relva fresca, embalado pela brisa suave e pela música perfeita dos pássaros.

O homem sonhava e, no seu sonho, encontrava-se com alguém em um tempo e lugar estranhos: encontrava-se comigo. Caminhávamos sobre a areia do deserto, sob o sol escaldante.

Buscávamos água para saciar nossa sede, para banhar nossos corpos. Nenhuma brisa, nenhuma ave para mostrar-nos o caminho, somente o céu, o deserto e a areia sob nossos pés. A noite chegou, o deserto tornou-se frio e adormecemos.

Sonhei com o tempo, milhões de anos se passando, as guerras e divindades se sobrepondo, uma a uma, formando camadas, sedimentos da existência humana.

Sonhei com risos e gritos, dor e alegria, desespero e êxtase numa cadeia de horas, dias, anos e milênios, onde cada fato dava sentido ao próximo, perdendo o próprio sentido.

Despertei. A brisa beijava suavemente o meu rosto e a música perfeita da água do riacho era entrecortada pelo canto suave dos pássaros. Olhei para minhas mãos, repletas de relva e me descobri velho, tão velho quanto meu avô, quando o conheci aos quatro anos.

E assim é o nosso planeta, a casa das nossas sucessões, dos campos, dos desertos, do tempo correndo como o riacho, na dimensão que conhecemos.

Não há resposta que já não esteja escrita, código que não tenha sido decifrado, passado que já não tenha sido futuro, como uma imagem fantástica que percorre minha lembrança através de um filme, do grande cinema, do mestre Ingmar Bergman: O sétimo selo.

Após dez anos de lutas, um cavaleiro retorna das Cruzadas e encontra o país assolado pela peste negra. Mergulha em crise existencial, passando a questionar sua fé e o próprio significado da vida. A Morte surge, na figura lúgubre de um homem com o firme propósito de levá-lo, pois era chegada a sua hora. O cavaleiro quer um pouco mais de tempo e convida-a para uma partida de xadrez. Se ele ganhar fica, se perder partirá com a Morte — que naturalmente aceita o desafio, pois nunca perde.

Século XIV é a época onde transcorre a narrativa de O sétimo selo. Representa o ápice da crise do sistema feudal, através da combinação de "guerra, peste e fome" que, junto com a morte, simbolizam os "quatro cavaleiros do Apocalipse" ao final da Idade Média.

A decadência do feudalismo tem início já no século XI e resulta de problemas estruturais, quando a elevada densidade demográfica na Europa determinou a necessidade de crescimento da produção de alimentos, levando os senhores feudais a aumentarem a exploração sobre os servos, que por sua vez iniciaram uma série de revoltas e fugas, agravando a crise já existente.

As cruzadas entre os séculos XI e XIII representaram outro golpe para o sistema feudal, já que os seus objetivos mais imediatos não foram alcançados: Jerusalém não foi reconquistada pelos cristãos, o cristianismo não foi reunificado e a crise feudal não foi sequer minimizada, já que a reabertura do Mediterrâneo promoveu o Renascimento comercial e urbano — já sinalizando o "pré-capitalismo" na passagem da Idade Média para a Moderna.

“Guerra, peste e fome", marcas do século XIV, afetaram tanto o feudalismo decadente como o capitalismo nascente.

A guerra dos Cem Anos (1337-1453) entre França e Inglaterra devastou grande parte da Europa ocidental, enquanto a "peste negra" eliminou cerca de 1/3 da população européia. A destruição dos campos, assolando plantações e rebanhos, trouxe a fome e a morte.

Nesse contexto de transição do feudalismo para o capitalismo, além do desenvolvimento do comércio monetário surgiram transformações sociais, com a projeção da burguesia, políticas, resultantes da formação das monarquias nacionais, culturais com o antropocentrismo e racionalismo renascentistas, e até religiosas com a Reforma Protestante e a Contrarreforma.

“Sabemos o que colheremos quando conhecermos as sementes” é a moral da “História”. Não há resposta que já não esteja escrita, código que não tenha sido decifrado, passado que já não tenha sido futuro.

Pois não é o planeta Terra que pede socorro — somos nós, filhos desgarrados, que perdemos o caminho de casa.

Vivemos em uma eterna adolescência existencial, apesar de tanta história sob nossos travesseiros. Precisamos evoluir, adquirir responsabilidade sobre o que praticamos.

O aquecimento global é nada se comparado ao congelamento dos nossos corações.

A noção de humanidade foi corrompida pela primeira esmola que se deu, pela primeira bala perdida no tempo.

O instinto de autopreservação foi ultrajado com a primeira floresta derrubada, com a primeira queimada.

Verde que te quero matas, amarelo que te quero ouro (para todos!), branco que te quero paz, azul que te quero céu, céu que te quero mar, mar que te quero rios, Ordem que te quero nova e Progresso que te quero humano.

*o arquiteto e paisagista Laccy Silva também toca o projeto Zou Cultural no Del Paseo


SAIBA MAIS
http://folhaspoeticas.blogspot.com

07 abril 2009

MAIS QUE UM TROCADO

Leitores desentocados


Ambulantes, pedintes e moradores de rua não esperam só por dinheiro dos motoristas parados no sinal vermelho. Sem pagar pra ver, eu vi. A cada livro oferecido em vez de esmola, um leitor descoberto. "Dinheiro não tenho, mas estou aqui com uma caixa cheia de livros. Quer um?"

Repeti essa oferta a pedintes, artistas circenses e vendedores ambulantes, pessoas de todas as idades que fazem dos congestionamentos da cidade de São Paulo o cenário do seu ganha-pão. A ideia surgiu de uma combinação com os colegas da revista NovaEscola: em vez de dinheiro, eu ofereceria um livro a quem me abordasse e conferiria as reações.

Para começar, acomodei 45 obras variadas — do clássico Auto da Barca do Inferno, escrito por Gil Vicente, ao infantil divertidíssimo Divina Albertina, da contemporânea Christine Davenier — em uma caixa de papelão no banco do carona de meu Palio preto. Tudo pronto, hora de rodar.

Em 13 oferecimentos, nenhuma recusa. E houve gente que pediu mais. Nas ruas, tem de tudo. Diferentemente do que se pode pensar, a maioria dessas pessoas tem, sim, alguma formação escolar. Uma pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, realizada só com moradores de rua e divulgada em 2008, revelou que apenas 15% nunca estudaram.

Como 74% afirmam ter sido alfabetizados, não é exagero dizer que as vias públicas são um terreno fértil para a leitura. Notei até certa familiaridade com o tema. No primeiro dia, num cruzamento do Itaim, um bairro nobre, encontrei Vítor (os nomes foram trocados para preservar as pessoas), 20 anos, vendedor de balas.

Assim que comecei a falar, ele projetou a cabeça para dentro do veículo e examinou o acervo:
- Tem aí algum do Sidney Sheldon? Era o que eu mais curtia quando estava na cadeia. Foi lá que aprendi a ler.

Na ausência do célebre novelista americano, o critério de seleção se tornou mais simples. Vítor pegou o exemplar mais grosso da caixa e aproveitou para escolher outro — "Esse do castelo, que deve ser de mistério" — para presentear a mulher que o esperava na calçada.

Aos poucos, fui percebendo que o público mais crítico era formado por jovens, como Micaela (nome trocado), 15 anos. Ela é parte do contingente de 2 mil ambulantes que batem ponto nos semáforos da cidade, de acordo com números da Prefeitura de São Paulo. Num domingo, enfrentava com paçocas a R$ 1 uma concorrência que apinhava todos os cruzamentos da Avenida Tiradentes, no Centro. Fiz a pergunta de sempre.

E ela respondeu:
- Hum, depende do livro. Tem algum de literatura? — provocou, antes de se decidir por Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

As crianças faziam festa (um dado vergonhoso: segundo a Prefeitura, ainda existem 1,8 mil delas nas ruas de São Paulo). Por estarem sempre acompanhadas, minha coleção diminuía a cada um desses encontros do acaso. Érico (nome fictício), 9 anos, chegou com ar desconfiado pelo lado do passageiro.

- Sabe ler?, perguntei.
- Não... — disse ele, enquanto olhava a caixa. Mas, já prevendo o que poderia ganhar, reformulou a resposta:
- Sim. Sei, sim.

- Em que ano você está?
- Na 4.ª B. Tio, você pode dar um para mim e outros para meus amigos?, indagou, apontando para um menino e uma menina, que já se aproximavam.

Mas o problema, como canta Paulinho da Viola, é que o sinal ia abrir. O motorista do carro da frente, indiferente à corrida desenfreada do trio, arrancou pela Avenida Brasil, levando embora a mercadoria pendurada no retrovisor.

Se no momento das entregas que eu realizava se misturavam humor, drama, aventura e certo suspense, observar a reação das pessoas depois de presenteadas era como reler um livro que fica mais saboroso a cada leitura.

Esquina após esquina, o enredo se repetia: enquanto eu esperava o sinal abrir, adultos e crianças, sentados no meio-fio, folheavam páginas. Pareciam se esquecer dos produtos, dos malabares, do dinheiro...

- Ganhar um livro é sempre bem-vindo. A literatura é maravilhosa, explicou, com sensibilidade, um vendedor de raquetes que dão choques em insetos.

Quase chegando ao fim da jornada literária, conheci Maria (nome... já se sabe). Carregava a pequena Vitória (precisa repetir?), 1 ano recém-completado, e cobiçava alguns trocados num canteiro da Zona Norte da cidade. Ganhou um livro infantil e agradeceu. Avancei dois quarteirões e fiz o retorno. Então, a vi novamente. Ela lia para a menininha no colo. Espremi os olhos para tentar ver seu semblante pelo retrovisor. Acho que sorria.

*editor da revista Nova Escola e mestrando em Educação, Rodrigo Ratier fez a leitura rodar