24 novembro 2014

O QUE NOS RESTA


O feminismo não
é um humanismo*




Durante uma de suas “conversações infinitas”, Hans-Ulrich Obrist me pede para fazer uma pergunta urgente, que artistas e movimentos políticos deveriam responder em conjunto. Eu digo: “Como viver com os animais? Como viver com os mortos?”. 

Outra pessoa pergunta: “E o humanismo? E o feminismo?” Senhoras, senhores e outros, de uma vez por todas, o feminismo não é um humanismo. O feminismo é um animalismo. Dito de outro modo, o animalismo é um feminismo dilatado e não antropocêntrico.

Não foram o motor a vapor, a imprensa ou a guilhotina as primeiras máquinas da Revolução Industrial, mas sim o escravo trabalhador da lavoura, a trabalhadora do sexo e reprodutora, e os animais. As primeiras máquinas da Revolução Industrial foram máquinas vivas. 

Assim, o humanismo inventou um outro corpo que chamou humano: um corpo soberano, branco, heterossexual, saudável, seminal. Um corpo estratificado, pleno de órgãos e de capital, cujas ações são cronometradas e cujos desejos são os efeitos de uma tecnologia necropolítica do prazer. Liberdade, igualdade, fraternidade. 

O animalismo revela as raízes coloniais e patriarcais dos princípios universais do humanismo europeu. O regime de escravidão, e depois o regime de trabalho assalariado, aparece como o fundamento da liberdade dos “homens modernos”; a expropriação e a segmentação da vida e do conhecimento como o reverso da igualdade; a guerra, a concorrência e a rivalidade como operadores da fraternidade.

O Renascimento, o Iluminismo, o milagre da revolução industrial repousam, portanto, sobre a redução de escravos e mulheres à condição de animais e sobre a redução dos três (escravos, mulheres e animais) à condição de máquinas (re-)produtivas. 

Se o animal foi um dia concebido e tratado como máquina, a máquina se torna pouco a pouco um tecnoanimal vivo entre os animais tecnovivos. A máquina e o animal (migrantes, corpos farmacopornográficos, filhos da ovelha Dolly, cérebros eletrodigitais) se constituem como novos sujeitos políticos do animalismo por vir. A máquina e o animal são nossos homônimos quânticos.

Já que toda a modernidade humanista soube apenas fazer proliferar tecnologias da morte, o animalismo deverá convidar a uma nova maneira de viver com os mortos. Com o planeta como cadáver e como fantasma. Transformar a necropolítica em necroestética. O animalismo torna-se portanto uma festa fúnebre. Uma celebração do luto. O animalismo é rito funerário, nascimento. Uma reunião solene de plantas e de flores em torno das vítimas da história do humanismo. 

O animalismo é uma separação e um acolhimento. O indigenismo queer, a pansexualidade planetária que transcende as espécies e os sexos, e o tecnoxamanismo, sistema de comunicação interespécies, são dispositivos de luto.

O animalismo não é um naturalismo. É um sistema ritual total. Uma contratecnologia de produção da consciência. A conversão para uma forma de vida, sem qualquer soberania. Sem qualquer hierarquia. O animalismo institui seu próprio direito. Sua própria economia. 

O animalismo não é um moralismo contratual. Ele recusa a estética do capitalismo e sua captura do desejo pelo consumo (de bens, ideias, informações, corpos). Ele não repousa nem sobre a troca nem sobre o interesse individual. 

O animalismo não é a revanche de um clã contra outro clã. O animalismo não é um heterosexualismo, nem um homossexualismo, nem um transssexualismo. O animalismo não é nem moderno nem pós-moderno. 

Posso afirmar, sem brincadeira alguma, que o animalismo não é um hollandismo. Não é um sarkozysmo ou bleumarinismo [N.T.: Referências a François Hollande, Nicolas Sarkozy e Marine Le Pen]. 

O animalismo não é um patriotismo. Nem um matrionismo. O animalismo não é um nacionalismo. Nem um europeísmo. O animalismo não é nem um capitalismo, nem um comunismo. A economia do animalismo é um benefício total, do tipo não agonístico. Uma cooperação fotossintética. Um gozo molecular. 

O animalismo é o vento que sopra. É o caminho através do qual o espírito da floresta de átomos ainda alcança os seres que voam. Os humanos, encarnações mascaradas da floresta, deverão se desmascarar do humano e se mascarar novamente do saber das abelhas.

A mudança necessária é tão profunda que se costuma dizer que ela é impossível. Tão profunda que se costuma dizer que ela é inimaginável. Mas o impossível está por vir. E o inimaginável nos é devido. 

O que era o mais impossível e inimaginável, a escravidão ou o fim da escravidão? O tempo de animalismo é o do impossível e o do inimaginável. Este é o nosso tempo: o único que nos resta.



*Beatriz Preciado (Burgos/Espanha, 1970) é filósofa, autora de numerosos
ensaios e dos livros Manifiesto Contrasexual (Barcelona: Opera Prima, 2002) e,
mais recentemente, de Testo Yonqui: sexo, drogas y biopolítica (Madrid,
Espasa-Calpe, 2008). Atualmente, ensina Teoria de Gênero na Universidade
de Paris VIII, na École des Beaux Arts de Bourges (França) e no Programa de
Estudos Independentes do Museu d’Art Contemporani de Barcelona.

(Traduzido do francês por Charles Feitosa. Revisão Técnica: Alessandro
Sales e Paulo Oneto. Publicado originalmente em www.opovo.com.br)
Imagem: Painting-of-a-dog (Francis Bacon/1952) em www.poetanarquista.blogspot.com.br)


10 novembro 2014

PEQUENAS DIFERENÇAS


O mal-estar e o
ódio à democracia*




Em tempos de discursos tão inflamados e carregados de ódio, de manifestações propondo o impeachment da Presidente e a intervenção militar, de xingamentos à chefe da nação (lembram-se das cerimônias de abertura e encerramento da Copa? À época, fiquei imaginando se algum alemão xingaria sua primeira-ministra daquela forma, ou um inglês sua rainha), entre tantas outras cenas penso ser difícil não tentarmos buscar explicações para a origem e o significado desses "afetos". 

Muitos entrelaçamentos são possíveis: da nossa história colonial à recente democratização, passando pelo ódio à democracia. Como a castração impera, traço aqui um olhar a partir do volume “Mal-estar da civilização” de Freud, entrelaçando-o a um outro, igualmente fabuloso, “Ódio à democracia”, do filósofo Rancière.

Aprendemos com o velho Sigmund que por sermos seres de linguagem toda completude é impossível e que a ordem civilizatória aponta para um sacrifício pulsional de cada um de nós, para que a civilização possa desenvolver-se. Como as tendências destrutivas e antissociais demarcam a condição humana, o sofrimento (o mal-estar) é inevitável.

A ideia de que o País ficou "dividido" após as eleições e que precisa ser "unificado" é de uma ingenuidade tocante. Primeiro, porque as diferenças sempre existiram: seja dos ricos do sul e sudeste e dos pobres do norte e nordeste. Dos brancos e dos negros, dos homens e das mulheres. Dos cristãos e dos judeus. Dos espanhóis em relação aos portugueses, dos italianos do norte e os do sul. Dos torcedores do Ceará e os do Fortaleza. 

Segundo, porque a ideia de unificação é a mesma do nazismo. As diferenças, sejam elas quais forem, são necessárias e demarcam uma das razões de ser da democracia.

Os discursos de ódio aos nordestinos explicitados nas redes sociais apontam, na verdade, para um ódio à democracia, que se apresenta como ódio ao povo e seus costumes, à sociedade que busca igualdade, ao respeito às diferenças, ao direito das minorias. 

Sabemos que a individualidade é uma coisa boa para as elites, mas torna-se um desastre para a civilização se a ela todos têm acesso, não é mesmo? Não consigo ver nas recentes manifestações ocorridas na capital paulista a defesa de interesses da civilização, e sim a defesa de interesses muito particulares.

A teoria da civilização de Freud considera a vida em sociedade como um compromisso imposto. As próprias instituições que funcionam para proteger a sobrevivência da humanidade também geram seu mal-estar. A agressividade é uma fonte de prazer a que os seres humanos relutam em renunciar após a terem experimentado. "Não se sentem bem sem ela", dizia ele. 

A agressividade serve como complemento ao amor: os laços libidinais que unem os membros de um grupo no afeto e na cooperação serão fortalecidos, se o grupo tiver pessoas de fora a quem possa odiar.

É o narcisismo das pequenas diferenças. Os homens parecem encontrar um gosto especial em odiar e perseguir, ou pelo menos ridicularizar, seus vizinhos mais próximos.


*Sabrina Matos é psicóloga, psicanalista e
professora da UNIFOR-Universidade de Fortaleza.