30 dezembro 2015

ESTE QUE PASSA


Um ano para esquecer (ou lembrar?!?)

Vai-te, 2015. Pega o beco, ano ruim. Nas tuas dobras, perdi minha mãe e uma porção de amigos. Quase perco também a fé e a esperança na chama que guia a vida. Quantas más notícias diárias, quantos sustos, quantas decepções, quantos aborrecimentos! 

Por esta época, costumamos riscar o traço de soma e avaliar o balanço dos 365 dias que se foram. Tenho que te dizer, 2015, que a tua nota não foi boa! 

Aliás, foi péssima, nem foste aprovado. O homem lá de cima teve que mexer os seus celestiais pauzinhos para te liberar, pois seria muito esquisito um ano repetir o ano, ainda mais tu sendo o que és. Já pensou se, em lugar de 2016, tivéssemos que te engolir de novo? Dose para leão, não? Para com esse sorriso cínico que a areia na ampulheta está se acabando. 

Não, não te chateies comigo, é que abusaste, meu caro, passaste do limite. Trouxeste contigo uma ruma de canalhas que, somados aos que já estavam por aqui, fizeram desandar o ponto do doce. Presenteaste-nos também com muita reversão de expectativas, a nós, brasileiros, que vivemos de acreditar que amanhã sempre será supimpamente melhor. 

Fizeste-nos intolerantes, brutos e mal-educados nas redes sociais e nos contatos interpessoais, estes cada vez mais raros. Tua lama destruiu um rio e a política nacional. Tornaste-nos amargos, desconfiados, avaros, bem mais que éramos. 

Uma nuvem de teus mosquitos empesteou-nos de moléstias vis. Ah, sim, e também ampliaste a nossa cota de individualismo, mesquinhez e consumismo, besta 
fera maligna.

O que dizes?! “Como é bom colocar a culpa pelos próprios fracassos nas costas alheias”?! Bem, acho que tens um pouco de razão. Como dizia Luigi Pirandello, nós, humanos, lamentavelmente temos necessidade de culpar os outros pelos nossos desastres e as nossas desventuras. 

Tipo eu aqui, já quase te incriminando pela terrível ressaca que ora me acomete. Claro que eu sei, meu chapa, que mais uma vez não cumpri as promessas que fiz quando tu começaste. 

Se vou ou não vou fazer o mesmo com o que se inicia é problema meu. Não, não estou sendo grosso contigo, é porque esse é um direito que me assiste, dá licença? Parece que não conheces a gente. Tiveste esse tempo todo para isso, aprontaste das tuas e ainda queres ser o rei da nossa vontade?

Ficas por aí, zombando da minha cara enquanto teu termo se esvai. Tua hora vai chegar, patife. És apenas uma mercadoria com prazo de validade quase vencido, apodrecendo nas gôndolas do supermercado das eras. 

Não posso dizer que em ti foi tudo um mar de fel, houve mel também. É que, neste ajuste de contas, o primeiro deu de lavagem no segundo. Há quem afirme, com Émile Zola, que "o sofrimento é o melhor remédio para acordar o espírito". 

Se for assim, por tua causa minha alma está mais que desperta. Por trás desse teu riso sardônico, sinto tua respiração ofegante. Tuas mãos, antes tão ocupadas com tantas tragédias, tremem a olhos vistos. 

Já, já tua boca ficará seca e teu coração parará. E a mim, de ilusão em ilusão, só restará tocar o barco adiante.


*Romeu Duarte é é arquiteto e urbanista pela UFC (1985),
Mestre (2005) e Doutor (2012) em Arquitetura e Urbanismo
pela USP. Atualmente é professor adjunto do Curso de
 Arquitetura e Urbanismo da UFC, sendo representante
suplente da instituição no Conselho Municipal
de Patrimônio Histórico e Cultural de Fortaleza.
Imagens em 
www.mtalbertprimary.school.nz e www.afitandspicylife.com


09 dezembro 2015

ETERNO TEMPLO DE FÉ


Adeste Fideles*




Cântico religioso natalino composto por John Reading (1677-1746), organista em Winchester, Inglaterra: “Vinde, fiéis”. 

Vinde adorar o Deus-menino, a salvo dos Herodes e demais demos, ancorado na praia.
Vinde juntar-se aos refugiados a palmilhar o chão, da Síria aos Inhamuns, buscando a salvação. É o povo refazendo as trilhas dos missionários, hoje infestadas por mercenários e assoldadados outros, a serviço dos anticristos.

“Adeste Fideles”, vinde integrar esta turma de sobreviventes, orar pelos que nasceram para não ser, e morreram de fome, de frio, no mar, ou na lama de Mariana. Ignoremos as vozes dos algozes e ouçamos os vagidos vindos daquela manjedoura. 

Fechai-lhes, Pai, os ouvidos ao ribombar das metralhadoras daqueles que fazem da morte um meio de vida. Deploremos o que vaticinou (profetizou) o filósofo genebrês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) em seu “Discurso sobre Ciências e Artes”: “quanto mais civilizados ficamos, mais corruptos nos tornamos”. E bárbaros! Tempos insanos estes.

Dias da ira, irônicos tempos. Assaltantes matam cardiologista com bala no coração, alpinista morre abalroado em rodovia. Estaríamos assistindo a um ensaio de outro apocalipse? Sonho, pesadelo ou realidade? 

Mas, como apregoam os africanos, a água da chuva não é tão preta como aparentam as nuvens. Festejemos o infante Jesus, em mais este Natal nosso, das luzes, dos sinos, nos presépios de palha e nos berços dourados, nas senzalas e nas casas grandes.

Natal das juras veladas, promessas não cumpridas, palavras que esquecemos de dizer, graças obtidas sem nosso reconhecimento. Penitenciemo-nos. Nessa noite, na consoada (ceia natalina ou de Ano Novo) recordemos quem partiu sem se despedir. Acorram! 

É tempo de colher a nova safra de esperança. Natal é Cristo de novo, um eterno templo de fé. Contrariemos o ódio e uma das “Odes” (1,1,8) do poeta e filósofo romano Quintus Horatius Flaccus (65 – 8 a.C.) em suas “Carmina”: “Carpe diem, quam minimum credula postero”, i.e., aproveita o dia (ou o momento fugaz) confiando o mínimo no futuro.

Esqueçamos este Horácio e pensemos com confiança. O Natal está dobrando a esquina. Exultemos, ao jeito de crianças esperando Papai Noel. O essencial é a espera. O resto é só alegria. Acreditemos no futuro que a Deus pertence, porquanto ele é nosso também.
Aleluia! Feliz Natal!


(*) Pedro Henrique Saraiva Leão é professor
Emérito da UFC, titular das academias Cearense 
de  Letras, de Medicina e de Médicos Escritores.
Publicado em www.opovo.com.br
Imagem em www.musicalion.com

(N. do E., com adendos da Wikipedia): O tema natalício Adeste fideles ganhou o nome Portuguese Hymn (ou Hino 
Português) em várias publicações inglesas, por ser esta composição 
cantada na capela da Embaixada de Portugal em Londres. Até a 
legalização do culto católico na Inglaterra, com a promulgação da Acta de 
Ajuda Católica de 1829, era um dos únicos locais em que sua 
celebração ocorria no território britânico. 

Vincent Novello (1781–1861), que foi a partir de 1797 "Mestre de Capela 

e Organista" da Capela Portuguesa, publicou em 1811 a coletânea intitulada 
"A Collection of Sacred Music, as Performed at the Royal Portuguese Chapel in London",
obra 
muito influente na constituição de um repertório católico inglês, e como “Adeste 

fideles” estava nela incluída, passou a ser conhecida como o "Hino Português".

Peça composta em harmonia funcional inteiramente tonal, com acompanhamento 

de baixo contínuo, num estilo, segundo alguns estudiosos, incompatível com a prática
musical do tempo do rei D. João IV de Portugal — que morreu em 1656 —, o Adeste fideles 

não deixa certeza absoluta sobre quem foi seu autor. Por sua natureza,  
não poderia ter sido composta antes do último quarto do século XVII

Vincent Novello, ao publicar o seu arranjo desta obra,
atribuiu-a a John Reading, organista do Winchester College morto em 1692, mas
a primeira versão conhecida é a de John Francis Wade (1711–1786). Sendo Reading
protestante e Wade um católico assumido, exilado no Continente por lealdade à
causa do Pretendente Stuart, seria mais natural que a Capela da Embaixada
Portuguesa adotasse uma obra sua do que uma composta por um anglicano.


Assim, embora a autoria desta cantiga de Natal seja contestada
na atualidade, popularmente — atendendo ao fato do rei D. João IV
de Portugal ser autor nascido em data mais antiga — a mesma
é considerada criação do primeiro monarca da Dinastia de Bragança.






04 dezembro 2015

PARA ONDE?


Pena que sejamos tão poucos*





Quando eu era estudante de Jornalismo, frequentava uma hemeroteca que havia no curso, e foi lá que consolidei o hábito de ler cadernos de cultura de tudo o que era jornal. 

Pouco depois, passei a comprar e colecionar alguns deles. Ainda tenho alguns exemplares do Rascunho, um caderno sobre livros que era publicado com a Folha de S.Paulo. Tenho também um especial sobre Fernando Pessoa, veiculado no JB

Em seguida, vieram as revistas. Minha coleção de Bravo, doei para um ex-repórter. Assim como tive que me desfazer de outras coleções, como as das revistas Cult, História, Primeira Leitura, Entre Livros; cadernos de cultura da extinta Gazeta Mercantil e Você &, caderno de cultura do jornal Valor Econômico

Só me restam alguns cadernos Mais, Ilustríssima, Sabático.

Quase tudo citado até aqui não existe mais. Ficamos mais pobres a cada caderno ou revista de cultura que sai de cena. 







Ultimamente, eu esperava a revista da livraria Cultura e a Ipsilonportuguesa, que trazia excelentes entrevistas com escritores, pensadores e músicos europeus e brasileiros. Embora fossem gratuitas, eu pagaria por elas. 

Eu sei que tem tudo na internet e o YouTube é um mundo, mas às vezes dá vontade de ver a seleção feita por outras pessoas. 

Além disso, folhear um bom produto editorial é uma experiência rara para os sentidos. Há dois meses, a Ipsilon anunciou que deixava de existir no papel. A Revista da Cultura encolheu tanto que pode ser prenúncio do fim.

Cada produto desses que saem do mercado me enche de certa tristeza. Para onde nós estamos caminhando? 








Os poucos leitores dessas revistas e suplementos culturais – que ainda resistem – ficam cada vez mais abandonados nesse movimento contínuo de desistências. 

Por isso mesmo, quase choro ao ler a notícia do fechamento da Cosac Naify. Só quem gosta muito de livro sabe como é lamentável tamanha baixa entre as casas editoras.

Lamentável em todos os sentidos. Pelos autores editados pela Cosac, pelo mercado que perde uma concorrente capaz de elevar o padrão das publicações, mas principalmente perdemos nós, os leitores, que amamos tanto aqueles livros caprichados, feitos com apuro e beleza. 

Mas que importa isso, se somos tão poucos...?!?



*a jornalista Regina Ribeiro é editora-executiva das
Edições Demócrito Rocha e colunista do jornal O Povo.








16 novembro 2015

PARIS, BEIRUTE, MARIANA


O que faz uma tragédia
ganhar a sua atenção?






Tragédias não são medidas pela quantidade de corpos amontoados, mas pelo que elas significam para cada um. Tenho uma certa dificuldade em absorver comentários de pessoas que reclamam que determinado massacre ganhou destaque quando outro, bem maior, permaneceu desconhecido. 

Até porque essa mesma pessoa provavelmente ignorou uma série de outras tragédias e, evitando buscar informações, responsabiliza apenas a imprensa. Que tem suas culpas, claro, mas não está sozinha.

Estou resgatando um texto que escrevi sobre a comparação de desgraças e a questão da empatia. Creio que vale a pena, neste momento em que uma competição entre Paris, Beirute, Mariana ou Baga parece ter ocupado as redes sociais.

Mantive durante anos, na sala do meu escritório, uma capa da revista Time retratando centenas de corpos espalhados no chão de Ruanda, vítimas do genocídio perpetrado pela maioria hutu contra a minoria tutsi, em 1994. Nela, pessoas procuram por parentes e aves procuram por almoço.

O título era algo como “Este é o início dos últimos dias, o apocalipse'' – talvez uma tentativa de chamar a atenção dos Estados Unidos e Europa para o massacre, através de um elemento simbólico que está no alicerce de sua fundação: o julgamento final do Novo Testamento.

Mas não era o começo do fim, apenas mais um expurgo – tanto que, após os 800 mil mortos em Ruanda, tivemos tempo de matar mais 400 mil no Sudão.

Essa capa era um lembrete para me empurrar para fora da zona de conforto. E também uma verdade incômoda. Em 1998, quando estava cobrindo a guerra pela independência de Timor Leste, onde o exército indonésio matou – de bala ou de fome – mais de 30% da população da ilha, um vendedor me disse, ao saber de onde eu era, que ficava feliz pelo Brasil, visto como um grande irmão lusófono, apoiar a luta.

Não tive coragem de dizer a ele que o meu país nem sabia de sua existência e que se aqueles mauberes pardos vivessem ou morressem, praticamente nenhuma ruga de preocupação seria produzida. Duvido que entre vocês, leitores, muitos tenham ouvido falar do Massacre do Cemitério de Santa Cruz, em Dili, capital de Timor. Imagine quantos massacres mais, mundo afora, acontecem invisíveis?

Por que relatamos tão pouco mortes nesses locais? A discussão faz parte de alguns debates acalorados em jornalismo. Isso é de interesse público? Do nosso público? 

As pessoas se interessam em saber sobre isso? Como as pessoas vão se interessar sobre isso se não as informamos com a devida importância? 

É possível ter opinião formada (não "preconceito de internet") sobre aquilo do qual nunca se ouviu falar? Enfim, “Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais"?

Somem-se a isso alguns elementos. Na teoria, a Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todos temos direito à dignidade por termos nascido humanos. Na prática, a vida de não brancos vale menos que a vida de brancos. E a vida de ricos vale mais que a vida de pobres. E a das mulheres menos que a dos homens. Simples assim. Se essa vida for de religião que cause estranhamento aos olhos ocidentais, pior ainda.





Outro elemento é a justificativa cultural, de que mortes em Nova Iorque, Roma, Paris e Londres causam mais impacto porque estão mais “próximas'' de nós. Elas aconteceriam no mesmo “caldo cultural'' em que estamos inseridos, com o qual temos uma histórica troca e convivência mútua e através do qual construímos nossa sociedade.

Sabemos quem são e como vivem e trabalham os moradores dessas cidades. E, a partir desse conhecimento, geramos empatia: nos projetamos no outro, entendemos a sua dor e conseguimos até senti-la.

Sim, mas se dividimos elementos simbólicos com a “metrópole'' também temos elos com as outras “colônias'', que passaram por processos históricos semelhantes aos nossos e, como nós, têm que pagar, até hoje, seus tributos. Seus problemas econômicos e sociais são semelhantes e, não raro, suas dores também. Damos as costas ao Sul e nos projetamos apenas ao Norte, sonhando, talvez um dia, sermos reconhecidos como parte da mesma "civilização ocidental" da qual não fazemos parte.

Não é inato um jovem brasileiro se interessar mais por Miami do que por La Paz. Ele aprende isso. Da mesma forma que aprende que a África, boa parte da América Latina e o Sul da Ásia são locais em que a vida não vale muita coisa, onde "selvagens" se matam desde sempre, como se as marcas da colonização e os processos políticos e econômicos globais, somados à ignomínia dos seus líderes locais, não valessem nada.

Se eles tivessem oportunidade de conhecer o Outro, as coisas seriam diferentes?

Uma menina-bomba, com cerca de dez anos de idade, teria se explodido, levando 20 pessoas consigo em um mercado na cidade de Maiduguri, norte da Nigéria, área de atuação do Boko Haram – milícia fundamentalista que deturpa os ensinamentos do islamismo em sua luta por poder. Ganhou pouca atenção no noticiário.

Da mesma forma, provavelmente você nunca ouviu falar do Ricky.

Tive o prazer de conhecê-lo há alguns anos. Sua história é incrível. Ele foi raptado e escravizado quando criança pelo Exército de Resistência do Senhor, em Uganda – um grupo fundamentalista que deturpa os ensinamentos do cristianismo em sua luta por poder, liderado por Joseph Kony, que se dizia porta-voz de Deus. 

Os meninos passavam por lavagem cerebral para se tornar soldados e, as meninas, para servirem de escravas sexuais. Ele conseguiu fugir, graduou-se e criou a Friends of Orphans, uma organização não-governamental que luta para reintegrar esses jovens à sociedade.

Disse-me que não há como alguém conhecer uma criança que foi escravizada para matar e morrer e aquilo não mudar a vida dessa pessoa definitivamente. Porque o relato levaria a perceber que todos aqueles que matam em nome de Alá ou Jeová, na verdade, não acreditam neles. 

E que mesmo esses “combatentes'' não são bestas-feras, mas pessoas transformadas em máquinas de guerra. Às vezes em nome daquilo que enche o tanque de nossos carros, às vezes em nome daquilo que brilha em dedos e pescoços.

Entramos na rede e, em um pé de página, a Anistia Internacional denuncia que os açougueiros do Boko Haram podem ter matado centenas, em sua maioria mulheres, crianças e idosos, na Nigéria. Faltam braços para apurar e checar a informação, ocupados com outros assuntos. Alguns importantes e que também são de interesse público. Outros, nem tanto.

Temos afinidade com aquilo que nos é mais próximo ou que desperta determinados sentimentos. Entendo que a libertação de 150 escravos que sangram na Amazônia para produzir boi que muitos nem sabem como vira bife choca menos que o resgate de um jovem sequestrado em nossa cidade.

Mas todos sabem o que é uma criança. É duro, portanto, imaginar que não desperte sentimentos. Talvez isso ocorra por banalização dessa violência. Talvez por um ato de fuga consciente ou inconsciente, diante da crença na incapacidade de fazer qualquer coisa para resolver o problema – mesmo que a indignação com a história de vida daquela criança africana possa levar você a ajudar na melhoria da qualidade de vida das crianças que estão ao seu lado.

Talvez a resposta resida no fato de que uma criança nua, exausta e com olhar perdido numa cama na beira de estrada, depois de uma hora de sexo forçado ou coberta de sangue após um dia de confronto armado, ou explodida em mil pedaços após um ataque suicida não é uma coisa fofa de se ver. 

Pelo contrário, para muitos é repugnante a ponto de transferirem a culpa pelo ocorrido para a própria vítima, que “se deixou ficar naquela situação indigna aos olhos de Deus''.

A discussão, porém, não é apenas sobre a distante África, mas também sobre as periferias das nossas cidades, que ficam logo ali. 

Em São Paulo, no Rio e em tantas outras, há uma matança orquestrada de jovens -- negros e pobres –, segundo as estatísticas do poder público. Desde que o seu sangue não respingue em ninguém, tudo bem.

É impossível comparar tragédias pelo número de mortes, uma vez que uma única morte pode compor uma tragédia.

E a indignação por algo não exclui a indignação por outra coisa.

Mas jogar para baixo do tapete os incômodos que também dizem respeito a todos nós, não os faz desaparecerem.





Portanto, busquem informação na internet para além de sua zona de conforto. Não fiquem esperando que a mídia os sirva de bandeja. 

Você não defende tanto sua autonomia? Seja independente, vá atrás! Mas também exija de nós, jornalistas, que tenhamos coragem de oferecer informação que as pessoas não querem ler, a despeito da audiência, da circulação e de outras formas de medir o “interesse público''. 

Ou seja, que divulguemos o que vocês não querem ler.

Por fim, dei de presente a capa da revista para uma amiga que estava em seus primeiros passos no Jornalismo. Não que eu não precise mais do lembrete, a ética é o exercício diário da memória. 

Mas aquilo é muito forte para ficar na memória de uma pessoa só. Torço para que a geração dela, inspirada em nossos erros e acertos, seja melhor que a nossa.


Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política 
pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em 
diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. 
É professor de Jornalismo na PUC-SP e pesquisador visitante do 
Departamento de Política da New School, em Nova York. É ainda 
diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das 
Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.

Conteúdo publicado em blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br

06 outubro 2015

SINAIS DE FALÊNCIA


A Amazônia pede socorro*

“Difundir esta mensagem para crianças e jovens é o segredo de um
futuro em que ainda possamos apreciar sombra e água 
fresca”

Uma brava guerreira, que resistiu por milhões de anos a cataclismos climáticos começou a sucumbir, nas últimas quatro décadas, aos ataques de inimigos cruéis: motosserras, tratores e fogo. O desmatamento sem limites ameaça a última grande floresta do planeta. 

Desde a década de 1970, a Amazônia perdeu uma área de 763 mil quilômetros quadrados (extensão equivalente a três estados de São Paulo) contabilizados apenas no território brasileiro. Ao todo, estima-se que 42 bilhões de árvores foram derrubadas. Os dados alarmantes constam no relatório O futuro climático da Amazônia, escrito por Antonio Donato Nobre, agrônomo com Mestrado em Biologia Tropical (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e PhD em Earth System Sciences (Biogeochemistry) pela University of New Hampshire (localizada em Durham/NH, EUA). 

Atualmente, Nobre é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e no Centro de Ciências do Sistema Terrestre, do INPE-Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.

Divulgado em outubro de 2014, o Relatório utiliza uma linguagem acessível para demonstrar a extrema importância do ecossistema amazônico para o equilíbrio do clima e o que precisa ser feito para frear a destruição desse bioma. Embora a sociedade não se dê conta, a situação já está muito grave. “Estamos na UTI e vemos sinais fortes de falência múltipla de órgãos”, afirma o cientista. 

“As magníficas florestas que tínhamos funcionavam como um ‘colchão verde’ que permitia amortecer os trancos do clima planetário. Com o desmatamento, essa resiliência está sendo perdida. As mudanças climáticas nos atingem secamente na coluna, como quando trafegamos em uma estrada esburacada em um jipe sem amortecedores e sem molas na suspensão”, compara.

Segundo Antonio Nobre, a ignorância das leis da natureza é o motor que impulsiona o desmatamento. Por isso, ele propõe a universalização do acesso às descobertas da ciência sobre o papel determinante da floresta na regulação do clima. “É vital que os fatos científicos cheguem à sociedade e tornem-se conhecimento corrente”, argumenta ele. O pesquisador aponta, ainda, outra medida a ser adotada urgentemente: o desmatamento zero. 

E só isto não basta. É preciso replantar as florestas em todo o País. “Se nos movermos como se estivéssemos diante de um esforço de guerra, talvez, ainda, tenhamos uma fresta de oportunidade para usar o poder de cicatrização dos sistemas vivos na recuperação do ‘berço esplendido’ que recebemos e que soubemos sujar e destruir como ninguém”, enfatiza. Leia a seguir a íntegra de sua entrevista:

SUELI ZOLA: No ano de 2014, o sudeste do Brasil enfrentou as mais altas temperaturas associadas à pior estiagem registrada na região. Isto é um sinal de que as temidas mudanças climáticas deixaram de ser cenário futuro e já se tornaram uma realidade? 
ANTONIO NOBRE: O noticiário internacional mostra que essas mudanças climáticas não são privilégio nosso. Muitas áreas no mundo já sofrem efeitos pesados pela perda da “saúde” do sistema de suporte da vida. A comunidade científica vem, há várias décadas, fazendo alertas e soando o alarme, de forma progressivamente mais chamativa. No entanto, a humanidade continuou dormitando e não querendo escutar, como o jovem com preguiça de acordar para ir à escola. Interesses escusos e sujos financiaram uma poderosa máquina de embaralhamento cognitivo, mantendo as pessoas na funesta crença de que estava tudo bem, que a natureza tem seus altos e baixos, mas que daqui a pouco volta tudo ao normal.

SZ: Não estamos percebendo a gravidade da situação? 
AN: Fazendo um paralelo com a saúde humana, nossa situação é comparável à de um alcoolista, que passou a vida se intoxicando, sentindo os efeitos de cada sessão de intoxicação na ressaca do dia seguinte, mas sempre se iludindo; acreditando na enorme capacidade do corpo (e da vida) de recuperar-se, de reconstruir bem-estar. Até que um dia os abusos repetidos (e todos registrados pelo corpo) levam ao diagnóstico fatal: cirrose hepática. Assim como o alcoolista, a humanidade gera e expele todos os tipos de tóxicos no organismo terrestre. Além de intoxicar, dedica-se também a devastar os próprios órgãos (ecossistemas), que em condições normais fariam a faxina e os reparos dos abusos. Neste sentido, a relação da humanidade com o planeta é ainda pior do que a do alcoolista com seu sofrido corpo; apesar de intoxicar-se repetidamente, não ocorreria ao alcoolista sair “desmatando” seu fígado. Então, eu creio que estamos na UTI e já vemos sinais fortes de falência múltipla de órgãos. As magníficas florestas que tínhamos funcionavam como um “colchão verde”, que permitia amortecer os trancos do clima planetário. Com o desmatamento, essa resiliência está sendo perdida. As mudanças climáticas nos atingem secamente na coluna, como quando trafegamos em uma estrada esburacada em um jipe sem amortecedores e sem molas na suspensão. 

SZ: O senhor utilizou, em uma palestra, uma metáfora para explicar como a Floresta Amazônica funciona, caracterizando-a como um coração...
AN: A Amazônia funciona, por analogia, como um corpo vivo e possui vários sistemas. A água irriga e drena os solos de forma análoga ao sangue, que irriga e drena os tecidos do corpo. Se os familiares
rios são análogos às veias, que drenam a água usada e a retornam para a origem no oceano, onde ficam as artérias do sistema natural? São os rios aéreos, que trazem a água fresca, renovada na evaporação do oceano. Para completar o sistema circulatório, faltava somente o coração, a bomba que impulsiona os fluxos nas artérias aéreas. A teoria da bomba biótica veio explicar que a potência que propele os ventos canalizados nos rios aéreos deve ser atribuída à grande floresta, que funciona,
então, como coração do ciclo hidrológico.

SZ: No relatório “O futuro climático da Amazônia”, o senhor mostra que a floresta perdeu, em 40 anos, uma área de 763 mil quilômetros quadrados, correspondente a três estados de São Paulo. Quais são as consequências desse passivo ambiental?
AN: Na realidade, essa extensão gigantesca é somente corte raso (barbear rente da floresta) na Amazônia brasileira; não inclui o corte raso nos outros países. Também não considera a degradação florestal, cuja área está estimada em 1,2 milhão de hectares só na Amazônia brasileira. As consequências do desmatamento são as mesmas quando um banco resolve executar o principal de uma dívida impagável de algum cliente, porque o próprio banco está à beira da falência. Cunhei uma expressão que esclarece bem as consequências: “o desmatamento sem limite encontrou no clima um juiz que sabe contar árvores, que não esquece e nem perdoa”.

SZ: Por que o desmatamento avançou tanto nesses últimos 40 anos?
AN: Estamos, hoje, trilhando na ciência das florestas um caminho trilhado pela Medicina no passado. Até o século 19 ainda se acreditava que a sangria (deixar verter o sangue por um corte) era um bom tratamento para doenças. Pouco ou nada se conhecia sobre a circulação, as doenças e os milhares de fatores que concorrem para a saúde em um complexo corpo humano. Até hoje, setores expressivos das sociedades em países que ainda têm florestas creem que a sangria da floresta (desmatamento) é algo bom para o seu país, porque abre espaço para outras atividades econômicas. Décadas atrás, apenas pouco ou nada se conhecia sobre o metabolismo da grande floresta e sua conexão com a atmosfera, o que a liga com outras regiões e com o planeta como um todo. Agora sabemos que o desmatamento é um desastre de grandes proporções e que, assim como a sangria da Medicina primitiva, pode levar mais provavelmente à morte do que à cura. Neste caso, a morte da grande guerreira, a Floresta Amazônica, afeta todos os que dependem de chuvas fartas, reguladas e benignas, entre muitos outros serviços prestados por essa usina ambiental.

SZ: Há como frear a esteira que nos conduz a esse triste fim?
AN: Vários colegas acreditam que não tem mais retorno. Imagino que pensam assim porque sabem da teimosia desta sociedade que preferiu ignorar os alertas qualificados de seus cientistas para seguir dormitando em cima de elaboradas mentiras que lhe ofereceu a máquina de embaralhamento cognitivo. Eu, porém, creio que, se nos movermos como se estivéssemos diante de um esforço de guerra, talvez, ainda, tenhamos uma fresta de oportunidade para usar o poder de cicatrização dos sistemas vivos na recuperação do “berço esplêndido” que recebemos e que soubemos sujar e destruir como ninguém.

SZ: Além da imprescindível manutenção do clima (e da vida, por decorrência), essa “usina ambiental” que é a Amazônia presta outros serviços ao nosso continente e planeta?
AN: Por meio dos serviços ao clima, a Amazônia conecta o funcionamento ecoclimático dos dois oceanos contíguos (Atlântico e Pacífico); tem manifesta importância na atenuação de oscilações como El niño e La niña, contém e mantém enorme quantidade de carbono, entretecido na astronomicamente complexa trama da vida (carbono que não vai produzir aquecimento planetário se a floresta não for queimada). E esses são apenas dois exemplos de muitas funções da grande floresta para o continente e para o planeta.

SZ: O senhor afirma, no Relatório, que o seu objetivo é reduzir a principal causa do desmatamento: a ignorância. Mas seria a ignorância a principal causa do desmatamento? Ou esta causa não estaria aliada também à ganância?
AN: Atrás dos sete pecados capitais, entre eles a ganância, reside e atua a crassa ignorância das leis da natureza. Não é por acaso que, na maior parte das histórias de cinema, vemos tais vícios terminarem mal. Creio firmemente que, se conseguirmos vencer essa guerra contra a ignorância em toda a sua desafiante extensão, veremos menos e menos ânimos escurecidos por ganância, gulodice, avareza e tantas outras excrescências humanas. Difundir essa mensagem para crianças e jovens é o segredo de um futuro em que ainda possamos apreciar sombra e água fresca. Mas mesmo hoje podemos ver conversões pelo saber. No Relatório, listo e coloco links para exemplos bonitos de que erros não precisam persistir quando entendemos e nos conscientizamos. O caminho para o abismo se abre ameaçador à nossa frente, mas aqui no cantinho ainda tem uma corda pendurada, que pode nos salvar do precipício. Temos que pegá-la com todas as forças e nos alçarmos por ela.
*Entrevista por Sueli Zola, publicada na revista
Saúde Samel - Ano III, 
n.o 13, jan-fev-mar 2015.
Imagem em http://ipam.org.br


22 setembro 2015

ÚNICA CHANCE: PARTIR


Uma crise sem nome


O homem de joelhos olha um ponto indefinido no horizonte e no futuro, após atravessar por baixo a barreira de arame farpado. Seu rosto possui uma expressão antiga, como as representações em cerâmica dos reis assírios, da antiga Mesopotâmia, preciosas relíquias destruídas pelo Estado Islâmico. Absorto no olhar investigador, ele parece indiferente à menina que chora desesperada, talvez porque os grampos do arame feriram seu corpo frágil.

A mãe também já conseguiu livrar-se da barreira e tenta consolá-la, acariciando-a com a mão direita, enquanto sustém no braço esquerdo o filho pequeno, um menino a ponto de cair. Do outro lado da cerca, um rapaz suspende os arames, a expressão aflita. Teme ser retido, antes da sua travessia. O rosto possui os mesmos traços dos povos arcaicos, as civilizações que nos legaram a maior parte do saber.

O parágrafo acima não se trata de um exercício de descrição, daqueles que fazíamos na quarta série do primário, olhando imagens toscamente coloridas. Trata-se de uma das milhares de fotos que todos os dias aparecem nos jornais e na internet, algumas tão comoventes que mudam o sentimento das pessoas em relação ao drama vivido pelos que tentam fugir da guerra, perseguição e pobreza, no Oriente Médio e na África.

São migrantes, refugiados ou clandestinos? Perde-se tempo buscando a palavra certa para defini-los, evitam reconhecer que se trata de refugiados, pessoas buscando refazer suas vidas, longe da pátria insalubre. Países como a Inglaterra e a França, que colonizaram a África e o Oriente Médio, enriquecendo às suas custas, fecham as portas e tentam barrar a entrada dos indesejados. Esquecem quando ocuparam o mundo inteiro com seus exércitos, sem pedir licença nem atravessar cercas de arame.

As fileiras de homens, mulheres e crianças se deslocando a pé também lembram os retirantes nordestinos fugindo à seca. A dor, a desolação e a miséria são as mesmas. Os nordestinos caminhavam dentro de um território chamado pátria, falavam o mesmo idioma, mas nem por isso estavam imunes à rejeição, ao desprezo e ao preconceito.


Dos campos de concentração cearenses da década de 1930, às propostas de barreiras migratórias em alguns estados do Sul e Sudeste, os fugitivos da seca enfrentaram barreiras reais e simbólicas, tão intransponíveis quanto as cercas de arame farpado do leste europeu. E toda vez que eles mesmos buscaram soluções para a miséria, em aglomerados como os de Canudos e Caldeirões, foram reprimidos pela força, mortos e destroçados, como se representassem ameaça à ordem estabelecida pelos mais poderosos.

Essa relação se alterava bruscamente quando havia interesse em mão de obra barata, semiescrava ou escrava, como no ciclo da borracha amazônica, da construção civil em São Paulo, da edificação de Brasília e da ponte Rio - Niterói, na expansão de fazendas no Mato Grosso e Goiás. Nesses casos, fazia-se um trabalho de aliciamento dos sertanejos analfabetos e miseráveis através de folhetos de cordéis, violeiros repentistas e de pessoas treinadas para seduzir com promessas de enriquecimento fácil. A realidade se revelava bem distinta do sonho, o tráfico escravo da África para o Brasil, em navios negreiros, mudava-se em tráfico do Nordeste para o Sudeste, Centro Oeste e Norte, em barcos a vapor e caminhões pau-de-arara.

Quando nosso tio Gustavo retornou do Sul, era madrugada. Nós ainda morávamos na fazenda dos Inhamuns. Ouvi os latidos dos cachorros, as batidas na porta de casa e o nome do meu pai chamado alto. Depois escutei minha mãe chorando, transtornada com a magreza do tio, seu semblante envelhecido. Tudo se passando junto de mim, em torno da rede em que eu fingia dormir para escutar as histórias que os adultos nunca me contavam.

Ofereceram ao tio o que havia em casa: rapadura, queijo, coalhada fresca, enquanto a mãe acendia o fogo e preparava uma refeição quente. Antes, o tio não comia nenhum alimento à base de leite. O sofrimento rebaixara seu orgulho. O Sul não existe – ele falou enquanto mastigava –, é pura invenção de violeiro repentista. Eles enchem a cabeça da gente de promessas mentirosas. Viajar é o mesmo que correr atrás de fumaça.

Disse que tinha chegado ao Mato Grosso, trabalhava numa fazenda. Os grileiros o tornaram escravo. Tomaram suas roupas e até o fumo do cigarro controlavam. Nunca via a cor do dinheiro, pois estava sempre devendo ao barracão. Teve malária e pensou não escapar com vida. Quando sentiu que ia morrer, fugiu por dentro da mata.

Fluxo ou crise migratória? Chega um tempo em que a única chance de sobrevivência é partir. Não tem que ver com nomadismo, expansão de território, busca de um guru espiritual. Foge-se das causas da miséria. E esse trânsito muda a feição do mundo. Foi sempre assim, desde o começo da história. E não adianta criar barreiras, interdições, porque nada contém essa força em deslocamento. O Brasil mudou graças a ela e a Europa certamente mudará.

Para melhor, tenho certeza.


*Ronaldo Correia de Brito é escritor, médico e dramaturgo.
Conteúdo publicado em www.opovo.com.br 
Imagens: Darko Vojinovic/AP e em www.imagereflex.com

15 setembro 2015

COLAPSO EM (MENOS DE) 40 ANOS


O Futuro Climático da Amazônia*



Lançado há um ano em São Paulo, o relatório “O Futuro Climático da Amazônia” conclui 
que a redução do desmatamento não basta para garantir as funções climáticas do bioma

A floresta sobreviveu por mais de 50 milhões de anos a vulcanismos, glaciações, meteoros, deriva do continente. Mas em menos de 50 anos, encontra-se ameaçada pela ação de humanos. Existe um paralelo entre a lenda grega do calcanhar de Aquiles e a importância da grande floresta amazônica para o clima da Terra.

Como o herói grego, a Amazônia – essa assembleia astronômica de extraordinários seres vivos – deve possuir algum tipo de capacidade que a tornou uma guerreira invulnerável, por dezenas de milhões de anos, resistindo aos cataclismos geofísicos que assolaram o planeta. Os achados quanto ao poder sobre os elementos da grande floresta, do condicionamento atmosférico umedecedor, passando pela nucleação de nuvens, à bomba biótica, revela e sugere mecanismos elaborados de invulnerabilidade. Onde estaria então o ponto fraco?

Resposta: na degradação e no desmatamento. Como a grande floresta presta um rol determinante de serviços para a estabilidade do clima local, regional e global, sua ruptura física significa levar a “grande guerreira” à derrota nesses papéis, a exemplo da ruptura do calcanhar de Aquiles, que o fez perder a guerra. A flecha do inimigo é a motosserra, o correntão, o fogo, a fumaça, a fuligem e outros fatores de origem humana que surgiram do uso errado, descontrolado e terrível das invenções do Antropoceno, a nova era em que a humanidade tornou-se uma força geológica capaz de mudar a face do planeta.

A perturbação antropogênica, embora já extensiva e provavelmente demasiada, é o fator mais imprevisível numa projeção sobre o destino final da Amazônia. A razão simples é que temos o livre arbítrio. Se escolhermos continuar no ritmo “deixa-como-está-para-ver-como-é-que-fica” (business as usual), e principalmente se optarmos por não recuperar os estragos infligidos à grande floresta, a teoria sugere que o sistema amazônico pode entrar em colapso em menos de 40 anos.

Os limiares de desmatamento nos quais as simulações indicavam ruptura do sistema climático atual estão se aproximando. Os efeitos locais e regionais no clima já estão sendo observados muito antes do esperado, especialmente ao longo das zonas mais devastadas, mas também nas áreas mais afastadas que dependiam da floresta para sua chuva.

O futuro climático da Amazônia chegou. A responsabilidade é nossa, sobre o que faremos com esse conhecimento. Portanto, a decisão urgente e já tardia pela intensificação da ação não pode esperar, se é que existe ainda chance de se reverter o quadro ameaçador. O investimento feito na atividade científica na Amazônia rendeu frutos de informação rica, fundamentada e disponível. A responsabilidade é nossa sobre o que faremos com esse conhecimento.

Para contemplarmos a dimensão do que precisa ser feito em relação ao futuro climático da Amazônia (e como consequência, da América do Sul), imaginemos um futuro próximo no qual o Brasil fosse atacado por uma poderosa nação inimiga com uma tecnologia secreta que emprega ondas perturbadoras emitidas por satélites para dissipar nuvens e, assim, reduzir as chuvas. A nação inimiga teria interesses comerciais ameaçados pelo sucesso do setor agrícola brasileiro.

Sua arma mata-chuvas serviria para minguar as plantações que com eles competem, quebrando safras e fazendo os preços internacionais explodirem. Informados pelo nosso serviço secreto dos malfeitos daquele país sobre o nosso, qual seria a reação dos agricultores brasileiros? Qual seria a reação da sociedade e do governo? Com toda a humilhação que o ultraje impõe, não precisamos de clarividência para suspeitar que a reação seria imediata e poderosa.

Nas grandes ameaças a uma nação, as forças militares entram logo em prontidão. Depois do ataque japonês a Pearl Harbor, os Estados Unidos decidiram ser necessário entrar na Segunda Guerra Mundial. Em poucos meses montou um “esforço de guerra”, em que fábricas de automóveis passaram a produzir tanques e aviões de guerra, e outras fábricas não bélicas passaram a produzir munição, armamentos e outros materiais e equipamentos requeridos. 

Até à Amazônia chegou aquele esforço de guerra, com os soldados da borracha. Sem tal esforço concentrado e extraordinário, os Aliados não teriam vencido.

Saindo da ficção e voltando à realidade, vemos que o ultraje contra o Brasil está em pleno curso sem qualquer envolvimento de nação estrangeira. Em uma guerra não declarada, nos últimos 40 anos centenas de milhares se dedicaram a exterminar as florestas. A remoção das florestas, ameaçando as chuvas e o clima, não derrotaria somente a competitiva agricultura; falta (ou excesso) de água afeta a produção de energia, as indústrias, o abastecimento das populações e a vida nas cidades. 

Mas, diferentemente da Europa e dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra, nós estivemos e permanecemos praticamente inertes em relação aos ataques sofridos, deixando que sigam, ano após ano, a destruir o berço esplêndido. Quem são os que atentam contra o bem-estar da nação? Por que a sociedade não se levantou e nosso Exército não foi acionado em nossa defesa?

Para enfrentar a gravidade da situação, precisamos de uma mobilização semelhante a um esforço de guerra, mas não direcionada ao conflito. Em primeira instância é urgente uma “guerra” contra a ignorância, um empenho sem precedentes para o esclarecimento da sociedade, inclusive e especialmente daqueles que ainda se aferram ao grande erro de acreditar ser inócua a devastação das florestas. 

Entre eles, os que manejam motosserras, tratores com correntão e tochas incendiárias, e os grupos que formularam políticas públicas, financiaram, controlaram e deram cobertura legislativa, legal e propagandística aos comandos da devastação. Contudo, apenas uma minoria da sociedade esteve e ainda está diretamente envolvida na destruição de florestas.

E é essa minoria que empurra a nação na direção do abismo climático. A esperança é de que a eliminação da ignorância quanto à função essencial das florestas na geração do clima amigo haverá por si só de participar como vetor na conversão de desmatadores em protetores, e quiçá, até em restauradores das florestas. Muitos exemplos já existem onde essa conversão ocorreu, com grandes vantagens para todos os envolvidos. 

Enquanto não ultrapassarmos o ponto de não retorno, existem umas poucas frestas de oportunidade para a ação reparadora. Este é o momento para engajar aquele vigoroso e saneador esforço de guerra na tentativa de reverter o desastre climático decorrente da destruição da floresta oceano-verde. Nessa direção, várias tarefas se impõem:

1) Popularizar a ciência da Floresta: saber é poder e  quem conhece protege.
É vital fazer com que os fatos científicos sobre o papel determinante da floresta para o clima amigo e o efeito do desmatamento na geração do clima inóspito cheguem à sociedade e tornem-se conhecimento corrente. Todos os esforços devem ser feitos para simplificar a mensagem sem deturpar-lhe a essência. Antes de tudo, deve-se falar para a sensibilidade das pessoas.

2) Zerar o desmatamento no curto prazo é indispensável, se quisermos conter dano maior ao clima.
É preciso erradicar vigorosamente a complacência e a procrastinação com a destruição. Um nível adequado de rigor compara-se com o tratamento dado ao tabaco. Constatados os males ao ser humano e os prejuízos econômicos à sociedade, uma série de medidas foram adotadas para desestimular o tabagismo.

No que diz respeito ao desmatamento no Brasil, várias providências do governo federal iniciaram esse processo de controle e desestímulo. Resultados significativos foram alcançados. Mas é preciso ir mais fundo e chegar à raiz do problema. Ampliar as políticas do Executivo, mobilizar a sociedade para neutralizar ações desagregadoras do Legislativo, como a anistia dada a desmatadores no novo Código Florestal Brasileiro. 

Infelizmente, as discussões em torno do Código Florestal não incluíram as consequências climáticas do uso do solo. Uma situação extraordinária requer medidas extraordinárias. Sempre é tempo de rever leis para adequá-las às demandas da realidade e da sociedade. Somente multar desmatadores, que mais adiante serão anistiados pela burocracia ou pelo Congresso, é receita de fracasso.

Outras vulnerabilidades do programa de controle do desmatamento incluem o estímulo de ciclos econômicos, a demanda crescente de mercados por madeira e produtos agrícolas, a cobiça por terras e os vetores representados por estradas, hidrelétricas e outros programas de desenvolvimento, cujas debilidades de planejamento fomentam a invasão e ocupação de áreas florestadas. Para que o desmatamento seja efetivamente zerado, como é indispensável para conter dano maior ao clima, todos esses buracos precisam ser tapados com mobilização e articulação da sociedade e governo, estratégia, inteligência, visão de longo prazo e sentido de urgência.

3) Acabar com o fogo, a fumaça e a fuligem: chamem os bombeiros!
Todas as formas de ignição originárias de atividades humanas sobre a floresta precisam ser rigorosamente extintas. O fogo em áreas florestais, pastos e áreas agrícolas, próximas ou distantes da Amazônia, é um problema grave. Quanto menos fontes de fumaça e fuligem existirem, menor o dano à formação de nuvens e chuvas, portanto menor o dano à floresta oceano-verde.

Dada a cultura do fogo ainda prevalente no campo, essa não será uma tarefa fácil, porém ela é fundamental. Mas voltemos à comparação com o tabaco. Durante décadas, a indústria mascarou a realidade sobre os danos do fumo à saúde. Empregou elaboradas estratégias e muitos recursos no embaralhamento cognitivo, buscando desmerecer a ciência e confundir a sociedade.

Mas a verdade triunfou. E algo que parecia impossível tornou-se tendência mundial irreversível. O mesmo percurso de banimento em relação ao fogo é facilitado pela existência de muitas alternativas à queima que podem ser empregadas com vantagens pelos produtores.

4) Recuperar o passivo do desmatamento: a fênix ressurge das cinzas
Embora zerar o desmatamento seja tarefa obrigatória, inescapável e há muito devida, somente isso já não é suficiente para reverter as ameaçadoras tendências climáticas. É preciso confrontar o passivo do desmatamento acumulado, começar a pagar o principal da enorme dívida ambiental com a floresta. Embora o esforço de reflorestamento seja desafiador, é o melhor - e talvez único - caminho para desviar um risco maior em relação ao clima.

Mas como reconstruir uma paisagem devastada? Se fosse uma paisagem urbana, seria o caso de se retrabalhar com as estruturas e edifícios que demandariam penosa reconstrução, tijolo a tijolo, um esforço de anos. Já estruturas inertes da natureza, como solos, rochas e montanhas levam milhares, milhões ou até bilhões de anos para se compor ou recompor, fruto da ação de lentas forças geofísicas.

E a paisagem viva? Se a vida anterior não tiver sido extinta, isto é, se houver propágulos, esporos, sementes, ovos, pais e seus filhotes, uma força misteriosa e automática de reconstrução entra em ação. Os “tijolos” biológicos são os átomos, que unem-se nas moléculas, compõem as substâncias que constroem as células, articulam-se nos tecidos, aglomeram-se nos órgãos, constituem os organismos, povoam os ecossistemas, interagem nos biomas e cuja soma total é a biosfera.

Para uma ideia prática do que está implícito nesta ordem viva encadeada e automática, imaginemos como seria se pudéssemos dispor de bens modernos (da tecnologia humana), da mesma forma que o faz a natureza. Poderíamos encomendar um automóvel (espécie) que viria em um módulo desenvolvedor (semente). Colocado em um vaso ao sol e regado por algumas semanas, cresceria o veículo.

Parece difícil? Acontece que essa tecnologia já existe, funcionando a todo vapor nos ecossistemas da Terra, desde a sua origem. Uma árvore portentosa, cujas habilidades físicas e bioquímicas para existir e sobreviver beiram a ficção, saiu inteirinha de uma simples e minúscula semente, tirando do ar e da terra os materiais para se formar.

Na perspectiva do clima, precisamos regenerar tudo o que foi um dia alterado. Assim, a própria floresta nos oferece soluções mirabolantes para a reconstrução das paisagens florestais nativas, pois dispõe de engenhosos mecanismos para recompor-se a partir de sementes, ou cicatrizar-se, com o processo natural de regeneração das árvores em clareiras. 

Há uma coleção rica de espécies de plantas pioneiras que têm a capacidade de crescer em condições ambientais extremas. Essas plantas formam uma floresta secundária densa, criando, assim, condições para que a complexa e duradoura floresta tropical possa restabelecer-se por sucessão ecológica de médio e longo prazos.

Entretanto, quando a área desmatada é muito grande, o processo natural entra em falência por não conseguir fazer chegar ao solo descoberto as sementes das pioneiras. Aí torna-se necessário o plantio das espécies nativas. Se ainda houver chuvas, a floresta se regenerará nas áreas replantadas. Uma coleção de árvores plantadas é melhor que o solo exposto, entretanto ainda está longe de reconstituir em toda sua complexidade a parte funcional do ecossistema destruído.

Precisamos e devemos regenerar o mais extensivamente possível o que foi alterado. Somente a integridade do oceano verde original garantiu ao longo de eras geológicas a saúde benigna e mantenedora do ciclo hidrológico na América do Sul. É preciso usar a paisagem de modo inteligente, zoneando as terras por suas potencialidades, vulnerabilidades e riscos.

Mas essa recomposição florestal implicaria a reversão do uso do solo em vastas áreas hoje ocupadas, algo improvável na ordem atual. Não obstante, existem caminhos alternativos com chances de criar condições imediatas de aceitação. Trata-se de fazer um uso inteligente da paisagem, com aplicação de tecnologias de zoneamento das terras em função das suas potencialidades, vulnerabilidades e riscos.

A agricultura e outras atividades econômicas nas zonas rurais podem ser otimizadas, aumentando sua capacidade produtiva e liberando espaço para o reflorestamento com espécies nativas. Variados estudos da Embrapa mostram como intensificar a produção pecuária, reduzindo grandemente a demanda por área de pastos. Projetos como o Y Ikatu Xingu e Cultivando Água Boa demonstram como é possível a associação de interessados dos vários setores na recuperação de matas ciliares e outras valiosas ações de sustentabilidade.

O caos climático previsto tem o potencial de ser incomensuravelmente mais danoso do que a Segunda Guerra Mundial. O que é impensável hoje pode tornar-se uma realidade incontornável em prazo menor do que esperamos. A China, com todos os seus graves problemas ambientais, já trilha esse caminho e tornou-se o país que mais refloresta. Restaurar as florestas nativas é a melhor aposta que podemos fazer contra o caos climático, uma verdadeira apólice de seguro.

5) Governantes e sociedade precisam despertar: choque de realidade
Em 2008, quando estourou a bolha financeira de Wall Street, governos mundo afora precisaram de apenas quinze dias para decidir usar trilhões de dólares de recursos públicos na salvação de bancos privados e evitar o que ameaçava tornar-se um colapso do sistema financeiro. A crise climática tem potencial para ser incomensuravelmente mais grave do que a crise financeira, não obstante as elites governantes vêm procrastinando por mais de 15 anos tomar decisões efetivas que desviem a humanidade do desastre climático. E essa procrastinação parece piorar com o tempo, mesmo a despeito da disponibilidade de vastas evidências científicas e saídas viáveis, atraentes e criativas.

Na Amazônia, o retardamento decisório está nos prazos dilatados para metas e ações que deveriam ser urgentes, mas emperram na burocracia impenetrável e impeditiva. Encontra-se também na demora no financiamento de projetos alternativos e benéficos e, principalmente, na lenta apropriação dos fatos científicos sobre a importância das florestas para o clima. Ignorar soluções inovadoras, disponíveis e viáveis de valorização econômica das florestas é jogar o problema para a frente. 

O desmatamento zero, que já era urgente há uma década, ainda é colocado como uma meta a ser realizada em futuro distante. Muito diferente portanto dos 15 dias usados para salvar os bancos. As elites governantes ainda têm como mudar o curso dos acontecimentos. Por isso precisam ter a boa vontade e humildade de reconhecer o risco de colapso no sistema ambiental.

Vimos o primeiro esforço coerente e consequente para reduzir efetivamente o desmatamento na Amazônia brasileira ganhar momentum a partir de 2003, e seus resultados são visíveis, demostrando que é possível ir mais longe. Mas a despeito das auspiciosas iniciativas e também de promessas importantes em projetos de carbono, estamos muito longe daquele “esforço de guerra” requerido para enfrentar a degradação climática. 

Para avançar de maneira efetiva, outras iniciativas criativas e enérgicas são urgentes e necessárias. Suficientemente documentados pela ciência, as mudanças climáticas globais e os ameaçadores impactos regionais e locais do desmatamento metem o pé na porta fechada da inação política, colocando pressão crescente sobre tomadores de decisão. Se o conhecimento científico qualificado, ou o principio da precaução e o simples bom senso não lograram gerar reação adequada daqueles que detêm os meios financeiros e os recursos estratégicos, o choque das torneiras secas aqui, cidades inundadas acolá e outros desastres naturais há de produzir reação.

É necessário, desejável, viável e até lucrativo alterar o modus operandi da ocupação humana na Amazônia. Embora todas as cinco tarefas sejam requeridas para a regeneração e o restabelecimento funcional da regulação climática pela floresta, a novidade estaria em enfrentar o passivo de desmatamento com reflorestamento.

O esforço de guerra contra a ignorância é a melhor estratégia para harmonizar a sociedade em torno do objetivo comum de recuperar o tempo perdido, criando chances reais de evitarmos o pior dos desastres climáticos. Se, a despeito da montanha de evidências científicas, ainda não formos capazes de agir, ou se formos lentos demais, então é provável que tenhamos de lidar com um prejuízo incompreensível para quem sempre teve sombra e água fresca providos graciosamente pela grande floresta.

 A mítica floresta amazônica é imensamente maior do que a humanidade consegue ver nela. Vai muito além de um museu geográfico de espécies ameaçadas guardadas em unidades de conservação e representa muito mais do que um simples depósito de carbono, referenciado como massa morta nos tratados climáticos.

A floresta é um espetacular parque tecnológico da natureza, um complexo vivo que forma uma poderosa e versátil usina de serviços ambientais. Qualquer apelo que se faça pela valorização da floresta precisa recuperar esse valor intrínseco. É preciso despertar a capacidade de espantar-se diante do gigantismo da biologia tropical em todas as escalas, desde a manipulação dos ínfimos átomos e moléculas até a interferência nos oceanos e na atmosfera global.

O que vemos de ações humanas sobre a floresta amazônica revela enorme inconsciência, tanto dos que estão envolvidos na sua destruição, quanto dos que vagamente desejam sua proteção. Cada nova iniciativa em defesa da floresta tem trilhado os mesmos caminhos e pressionado as mesmas teclas.

Neste comportamento, insistimos no que Einstein definiu como a própria insanidade: “Fazer a mesma coisa sempre, de novo, esperando resultados diferentes.” O abundante conhecimento científico, assim como outras formas accessíveis de percepção e entendimento já nos permitem resolver problemas empregando uma nova abordagem – iluminada, integrativa, propositiva e construtiva.

Uma abordagem diferente, portanto, do pragmatismo reducionista e inconsequente que nos guiou até aqui. Análises sérias e abrangentes mostram numerosas oportunidades para a harmonização da presença e dos interesses da sociedade contemporânea com uma Amazônia viva e vigorosa, reconstituída em suas múltiplas capacidades.

Para chegarmos lá, é preciso compenetração e modéstia, dedicação e compromisso com a vida. Com os recursos tecnológicos disponíveis, podemos agregar inteligência à ocupação, otimizando um novo uso do solo que abra espaço para a reconstrução ecológica da floresta. Podemos também revelar muitos outros segredos ainda bem guardados da resiliente biologia tropical e, com isso, ir muito além de apenas compreender seus mecanismos.

Pioneira na percepção dessas possibilidades, a professora universitária, escritora e ativista Janine Benyus lançou em seu livro Biomimética, a inovação inspirada pela Natureza, uma revolução na ideia de conexão entre natureza e tecnologia. Apresentando a proposta de que os seres humanos deveriam copiar conscientemente o gênio da Natureza nas suas próprias criações, ela enuncia três princípios básicos para essa reaproximação dar certo:

1) a Natureza como modelo: estudar os sistemas da Natureza e então copiá-los ou inspirar-se nos seus designs e processos para resolver problemas humanos. Ex: uma célula solar inspirada por uma folha.

2)  a Natureza como medida: usar um padrão ou critério ecológico para julgar a “correção” de nossas inovações. Após 3,8 bilhões de anos de evolução, a Natureza aprendeu o que funciona, o que é apropriado e o que tem durabilidade.

3) a Natureza como mentor: um novo modo de ver e valorizar a Natureza, do qual surge uma era baseada não naquilo que podemos “extrair” do mundo natural, mas no que podemos aprender dele.

Respondendo a Einstein: “Não podemos resolver problemas empregando o mesmo tipo de pensamento que usamos ao criá-los.” O pragmatismo gerador de problemas não deve ser a saída para resolver esses mesmos problemas. 


Além desses três, a revolução da Biomimética reconhece uma série de outros princípios que guiam o funcionamento da natureza e que apresentam potencial para, se absorvidos pela civilização global, resolver grande parte dos problemas atuais.

Nesta proposta, uma lista curta desses princípios específicos listados por Janine Benyus constata que a natureza é propelida pela luz solar; utiliza somente a energia de que necessita; ajusta forma à função; recicla todas as coisas; recompensa a cooperação; aposta na diversidade; demanda conhecimento local; limita os excessos internamente; e aproveita o poder dos limites.
*Antonio Donato Nobre é pesquisador do Centro de Ciência
do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Conteúdo publicado em www.ccst.inpe.br e www.concurseirosocial.net