08 janeiro 2008

O ÍNCUBO

Aquecimento local


Ele virá como num sonho mas será real. Porque habita a realidade mais profunda — e inadmissível, não esqueça — dos seus desejos femininos. Chegará devagar e sem alarde. E deixará os sapatos à entrada para poder pisar delicadamente o seu chão e sentir desde o início todos os detalhes de sua presença. Ele, o meticuloso.

Haverá uma roupa no sofá da sala, você anda meio desleixada?... Quem será o moço no porta-retrato, seu namorado? Que diria se acaso soubesse que ele esteve em seu apartamento a essa hora da noite? A porta de seu quarto estará trancada, evidente, mas ele já sabe que você anseia por essa visita. E é exatamente por isso que poderá vir e entrar. Se este encontro não existisse antes em seu pensamento, minha querida, ele não passaria jamais por esta porta, aberta ou fechada.

Ele entrará em seu quarto enquanto acostuma os olhos à penumbra do ambiente, os olhos que a encontrarão dormindo na cama. Já haverá algum tempo que não se vêem, ele estará curioso em saber como você está. Você dormirá tranquila, os lábios roçando o travesseiro e os cabelos escorrendo pelas curvas do seu rosto suave. Então ele se permitirá profanar a harmonia do quadro e afastará para o lado uma mecha de cabelo que insiste em querer seus lábios. Ele, o profano.

Não, de forma alguma ele se sentirá culpado por invadir assim sua intimidade mais secreta, logo você, tão cheia de recatos. Porque foi você quem quis assim embora jamais o revele, nem a si mesma. É essa a lógica dele: você tem que chamá-lo, para que ele possa vir. Estará, portanto, somente realizando um velho desejo seu — você é que sempre foi boba para admitir os próprios pensamentos. Ele, aliás, gostaria imensamente de estar presente quando, pela manhã, você sonolenta a lavar o rosto, viesse a primeira lembrança do sonho que teve, tão estranho, tão louco... Mas tão real, não?, tão real...

Ah, ele adoraria vê-la, você estancando subitamente, em pé ao espelho, os olhos na expressão de quem lembra, o gesto suspenso na vã tentativa de congelar o resto de lembrança que vai morrendo, morrendo... E a cara de incredulidade e espanto. Mas não, ele não poderá estar presente. Seus poderes não resistem longe dos sonhos.

Ele puxará a ponta do lençol, descobrindo seu ombro magro. Mais um pouco e surgirão aos seus olhos agradecidos os seus seios, descansando serenos e alheios no ritmo calmo de sua respiração. Ele não resistirá e deixará escapar um sorriso... Nesse momento já não poderá evitar de se deter um pouco e comparar a imagem que tem à mulher que conhece, tão pudica. Se você pudesse despertar agora, certamente teria um de seus repentes de indignação e bradaria que ele está violando sua intimidade e que não tem o direito. Mas nesse sonho, minha querida, não há lugar para violências. E, além do mais, não foi você quem o chamou? E quem melhor que ele, o que capta o que se esconde, para entender a beleza tímida dos seus seios?

Então, de repente, para total surpresa dele... você se moverá! E virará o corpo para o lado, privando dos seus seios o olhar dele. Ele confessará, do alto de suas vivências no assunto, que, tsc-tsc, por essa não esperava. E não esperava mesmo. Então sussurrará ao seu ouvido, sorrindo uma revolta bem-humorada, que certos pudores não têm jeito, não adormecem nunca.

Em sinal de protesto ele puxará de uma vez o lençol que cobria seu corpo... E terá outra surpresa o nosso amigo. Duas, para ser exato. Quem, em algum tempo, poderia imaginar, inclusive ele, que aquele autêntico recato ambulante dormisse nua, inteiramente nua, despojadamente nua? E, mais curioso ainda, que fosse tão surpreendentemente desejável sem vestes?! Ninguém certamente, você sempre fez questão de se ocultar demais. E ele muito menos, ele que há algum tempo flagra a ânsia dessa aventura por trás das couraças de sua defesa.

Retirado o lençol, o profano se afastará da cama e se posicionará melhor para observar, pintor orgulhoso do novo quadro. Você nua na cama. Nua e sem defesa. Entregue aos olhos de um homem como jamais imaginou que pudesse. A pele brilhando na penumbra. O corpo inteiramente nu, convidativamente disposto sobre a cama, finalmente autorizado, nihil obstat. Ah, ele se deliciará enormemente ao vê-la aprisionada em sua própria nudez. Deliciosamente prisioneira. Insuspeitavelmente bela.

E ele percorrerá com os olhos comovidos as paisagens de seu corpo, montes e planícies, savanas e cavernas. Gozará sinceramente enternecido todas as minúcias de sua pele e procurará novos ângulos para sua beleza inconsciente — e finalmente despudorada. Um fino e cruel ladrão de intimidades, desumano e desrespeitador. "Ora, convenhamos...", ele dirá, "um pouco de perversidade não faz mal a mulher nenhuma!" Principalmente a você, que sequer admite durante o dia o que se permite em sonhos...

Então ele perceberá, desconfiado, a sua respiração mais intensa... o ritmo mais acelerado... Aproximará o rosto do seu, já antevendo a nova surpresa, e por fim constatará sua excitação. "Ora, ora...", ele exclamará sorrindo, e, enquanto se despe ao lado da cama, observará seus movimentos angustiados e impacientes, como se buscasse alguém ausente.

Ele comparecerá a esse encontro porque você o quer, vamos deixar isso bem claro, mas também porque anda curioso em saber o que existe por trás de toda essa sua aparente frieza e indiferença. Aparente sim, ele sabe disso. Mesmo nas mulheres, bichos ardilosos que sempre foram, o olhar nem sempre acompanha a velocidade da mentira — ou da habilidade, como queira. E foi o olhar, minha querida, foi exatamente esse pequeno detalhe que naquele dia a denunciou, a você e suas tão bem-cuidadas aparências. Foi apenas um rápido encontro de olhares, você talvez nem se lembre. Foi somente um desejo que, por um segundo, escapou sorrateiro de sua vontade e que, ao perceber o olhar dele, ato contínuo, voltou a ser frieza e desdém. Ah, mas já era tarde. Ele agora sabia de tudo.

Jogada a roupa a um canto, ele se deitará ao seu lado na cama, já chega de perversidade. Sentirá então o calor receptivo e o aroma delicado de sua pele. Você jogará ao chão velhos escrúpulos que por lá ficarão enquanto ele não se for e decerto que se espantarão ante toda a sua disposição revelada. Seus olhos estarão sempre fechados, mas verão tudo em seu sonho. Só não verão os olhos dele, o que fará mais difusa ainda sua recordação. Se pudesse, ele confessaria que por vezes lhe falta a cumplicidade do olhar, em algumas mulheres bem mais que em outras. Mas as regras são essas, o que se pode fazer?

Enquanto sua boca o procura e seus braços exigem com avidez o corpo dele, ele sorrirá dessa sua insuspeitada ardência. E finalmente fechará os olhos, deslizando de vez para dentro do seu sonho, envolto pela velha sensação de vertigem, dor e alívio que essa queda lhe provoca. E só retornará quando novamente abri-los.

No outro dia você se lembrará de quase tudo, mas sua lembrança será como névoa — que, aos poucos, e sem que você possa evitar, irá se dissipando, terminando por se transformar naquela sensação de já ter vivido algo assim em algum dia, algum lugar... "Mas como, se tudo foi apenas um sonho?", você se perguntará, sempre surpresa com a qualidade das lembranças.

Lembranças que a farão sorrir pelos cantos do dia, subitamente envergonhada. "O que foi?" — a amiga indagará, desconfiada, e você disfarçará, procurando qualquer coisa para se ocupar e fugir do flagrante. Mas nem sempre conseguirá conter o sorriso que, fora do seu controle, denunciará a si mesma uma descarada satisfação.

Você pensará nele, sim, pensará. E por pouco não se renderá ao desejo, várias e vacilantes vezes ao lado do telefone. Sussurrará na rua, sem querer, o nome do maldito. Mas ao mesmo tempo evitará de todas as formas encontrá-lo, pois se sentirá nua nesse encontro. Perceberá um vento gelado a roçar-lhe os pêlos e trazer arrepios toda vez que se recordar dessa noite. Ventos do outro mundo? Lera certa vez alguma coisa sobre demônios que invadem o sono das mulheres para copular com elas, lendas medievais. A história não lhe saíra da cabeça.

"Demônios... não sabia que pudessem ser tão competentes", você pensará, permitindo-se afinal brincar um pouco. Bem competentes... Mas não, não — você sacudirá a cabeça, abandonando tal absurdo, e voltará aos afazeres. Entrar no sonho dos outros, imagina, seria o fim do mundo...

"Mas e se fosse possível? E se realmente eles pudessem..." "Não, não, foi tudo um sonho" — você repetirá mais uma vez, lutando contra a vontade que arde de vê-lo novamente. Foi apenas um sonho louco e alguma coincidência. E além do mais há muito que essas coisas não existem.



*Ricardo Kelmer é escritor, letrista e roteirista e mora em São Paulo, Terra, 3.ª Pedra do Sol


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