26 março 2012

DE POLÍTICAS E CANÁRIOS

Fina flor da moralidade pública quer redefinir terras indígenas, quilombolas e ambientais*

O canário está ferido. Suas plumas estão tintas de sangue. Ele foi atingido nesta quarta-feira, 21 de março, pelos disparos feitos por trinta e oito deputados que aprovaram, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, um relatório destinado a mudar a atual Constituição Federal do Brasil.

A mudança proposta redefine as terras indígenas, quilombolas e ambientais, num retrocesso histórico que, se for confirmado por três quintos dos parlamentares, condena o canarinho à morte.

A imagem do canário é do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Ele conta que nas minas de carvão do Reino Unido, os mineiros tinham o costume, até 1986, de levar com eles, para dentro dos socavões, um canário em uma gaiola.

O bichinho, muito mais sensível que os humanos aos gases tóxicos acumulados dentro dos túneis, começa a agonizar quando o ar fica envenenado. Sua morte é um sinal para os mineiros, um “aviso” de que devem evacuar as galerias. “Canary in the coal mine” — canário na mina de carvão — virou expressão que indica perigo iminente.
Dessa forma, os mineiros usavam o canário como um “indicador ecológico” toda vez que iam cavar os “ossos da terra” — é assim que os Yanomami chamam os metais extraídos das jazidas.
Viveiros de Castro considera que os índios, bem à sua revelia, são os nossos canários sociológicos ou socioambientais. A agonia dos índios é um “aviso”, anunciando que a sociedade envolvente está podre, na iminência de falir, do ponto de vista ecológico e sociopolítico.

E acontece que, no Brasil, se essa emenda passar, o ar vai ficar irrespirável. Só que, ao contrário dos mineiros, nós não temos para onde nos picar. O nosso destino está amarrado ao das sociedades indígenas.
Nova Era
Aqui, durante cinco séculos, os índios tiveram suas terras pilhadas, saqueadas, usurpadas, sempre através da violência armada. Em 1988, a Assembleia Nacional Constituinte deu um basta nisso, quando aprovou a Constituição, selando um pacto novo com mais de 200 povos.

O Brasil falou, então, aos índios, que não era mais possível recuperar os 87% das terras que eles haviam perdido, mas daqui em diante o Estado garantia a demarcação dos 13% restantes que ainda ocupam. A partir de agora, ninguém mais pode roubar terra de índio.

Esse foi o pacto assumido pela “carta cidadã” de 1988, que acatou o pressuposto da antecedência histórica, reconhecendo aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, posto que eles estavam aqui antes do que qualquer fazendeiro.

O quadro jurídico novo reconhece ainda organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como a relação integrativa com a terra, que é tão essencial para os índios como o ar para qualquer ser vivo.
Com esse espírito, a Constituição criou mecanismos de ações afirmativas para compensar os crimes históricos cometidos contra os índios, permitindo que o país inaugurasse uma “nova era constitucional”, para usar a expressão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ayres Britto, em seu relatório sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
O Brasil chamou, como testemunhas desse novo pacto, o mundo inteiro, quando assinou, em 2002, a Convenção 169 da OIT-Organização Internacional do Trabalho, que estabelece, no plano internacional, a proteção das instituições, das pessoas, dos bens e do trabalho dos índios.

Depois, no dia 13 de setembro de 2007, numa Assembleia Geral da ONU-Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque, o Brasil aprovou a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, e se comprometeu, na frente de todos os países do mundo, que iria respeitar esses direitos.
Agora, 38 deputados pretendem rasgar a Constituição e descumprir os acordos nacionais e internacionais do Brasil. Eles ressuscitaram a Proposta de Emenda Constitucional — a PEC 215/2000 — de autoria do deputado Almir Sá, do PPB (atual PP — vixe, vixe) de Roraima.

Esta PEC estabelece que quem decide se uma terra é indígena não é a forma tradicional de ocupação, mas o Congresso Nacional, que pode até mesmo rever as demarcações já feitas. As raposas votam que são elas que devem tomar conta do galinheiro.
O relatório aprovado do deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR - vixe, vixe) retirou essa última parte sobre as terras já demarcadas, mas conservou o restante, que representa um golpe contra índios e quilombolas. Manteve várias outras propostas incorporadas à PEC 215, como a do deputado Carlos Souza (PSD-AM, vixe, vixe), que determina que as Assembleias Legislativas devem ser consultadas sobre demarcações — o que é competência da União — “a fim de se evitarem os significativos prejuízos que a demarcação de terras indígenas impõe às unidades federadas”. Ele não explica que prejuízos são esses e, afinal, quem são os prejudicados.
Agonia do canário
A sessão da CCJ, tumultuada, durou mais de quatro horas. Os índios, é claro, se fizeram presentes e protestaram, entre eles, Jaci Makuxi, comandante da luta pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Tiveram o apoio do deputado Alessandro Molon (PT-RJ), para quem a PEC é um “gravísimo retrocesso, gritantemente inconstitucional, que atende à sanha do ruralistas por novas terras”.

O relatório foi aprovado com o voto de 38 deputados da CCJ. Entre eles, a fina flor da moralidade pública, da retidão e da honestidade, com uma larga folha de serviços prestados a si próprios: Paulo Maluf, Esperidião Amin, Alberto Lupion, Eduardo Cunha, Eliseu Padilha e — que vergonha! — Roberto Freire, além dos cultivadores de cacau do Sul da Bahia, Félix Mendonça e Paulo Magalhães, inimigos declarados dos Pataxó e Tupinambá.


Agora, com o relatório aprovado, uma Comissão especial criada exclusivamente para isto vai elaborar a emenda que deve ser apresentada ao plenário. Resta saber se a parte sadia do Brasil vai assistir acocorada, de braços cruzados, à morte do canário, e vai morrer junto com ele, ou se vai se levantar contra essa vergonhosa legislação em causa própria.



O ministro Ayres Britto, que assumirá a presidência do Supremo Tribunal Federal, representa um fiapo de esperança. Quando ele foi relator no caso Raposa Serra do Sol, desmontou o alegado antagonismo entre a questão indígena e o desenvolvimento e defendeu “a efetivação de um novo tipo de igualdade, qual seja, a igualdade civil-moral de minorias que têm experimentado historicamente e por preconceito desvantagem corporativa com outros segmentos sociais”.


Contra essa igualdade civil-moral é que votaram os 38 deputados, que parecem retomar o espírito das comemorações do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, cuja sessão magna, no dia 4 de maio de 1900, foi aberta com um discurso do engenheiro Paulo de Frontin, empossado depois como prefeito do Rio de Janeiro.

Ele disse, com todas as letras, que o Brasil nada tinha de indígena: “Os selvícolas (…), não são nem podem ser considerados parte integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o conseguindo, eliminá-los”.



O cara, que presidia as solenidades, estava propondo eliminar os índios, como se estivesse dando um presente de aniversário ao País. Afinal, qual é o lugar dos índios na construção do Brasil?

Se for aquele planejado por Paulo de Frontin e pelos ruralistas, então quem está ameaçada é toda a sociedade brasileira, nós, nossos filhos e nossos netos, e já podemos ouvir os gritos soando nas galerias:
— Canary in the coal mine!...
*o professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa
de
Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa no
Programa de
Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO).
Imagem em  
http://
altmentalities.wordpress.com


Informações complementares: