22 outubro 2012

MANIFESTO

Em defesa da Civilização


Economistas formados na Unicamp escreveram 
o “Manifesto em Defesa da Civilização”


Em um texto cuja concisão não aparenta refletir a ampla dimensão de sua finalidade, economistas egressos da Universidade de Campinas-Unicamp alertam para a profunda regressão social em curso nos países desenvolvidos e apontam que a crise atual intensifica um processo iniciado no início dos anos  1970. 
"Sob o ideário liberal dos mercados, em nome da eficiência e da competição, a ética da solidariedade foi substituída pela ética da concorrência ou do desempenho. O desempenho no mercado é o que define a posição do indivíduo na sociedade: vencedor ou perdedor. Neste cenário, o desemprego e o trabalho precário atingem proporções dramáticas, ampliando a massa de perdedores". 
"O Welfare State, ao invés de se espalhar pelo planeta, encampando as tradicionais hordas de excluídos, encolhe, aumentando a quantidade de deserdados", afirmam. Diante desse quadro, perguntam: "estamos nós, hoje, vivendo uma crise que nega os princípios fundamentais que regem a vida civilizada e democrática? E se isso for verdade: quanto tempo mais a humanidade suportará tamanha regressão?"
O Manifesto em Defesa da Civilização organiza reflexões gestadas pelo núcleo Plataforma Política Social – Agenda para o Brasil do Século XXI, que pretende ser uma trincheira na defesa e na consolidação da cidadania conquistada pela sociedade brasileira em 1988 — inspiradas, em grande medida, nos princípios de seguridade social e de universalidade que orientaram a ação governamental nos “anos de ouro” (1945/1975) de "capitalismo regulado".  
Segue a íntegra do documento.

"Vivemos hoje um período de profunda regressão social nos países ditos desenvolvidos. A crise atual apenas explicita a regressão e a torna mais dramática. Os exemplos multiplicam-se. Em Madri, uma jovem de 33 anos, outrora funcionária dos Correios, vasculha o lixo colocado do lado de fora de um supermercado. Também em Girona, na Espanha, diante do mesmo problema a Prefeitura mandou colocar cadeados nas latas de lixo. O objetivo alegado é preservar a saúde das pessoas. 
Em Atenas, na movimentada Praça Syntagma situada em frente ao Parlamento, Dimitris Christoulas, químico aposentado de 77 anos, atira contra a própria cabeça numa manhã de quarta-feira. Na nota de suicídio ele afirma ser essa a única solução digna possível frente a um governo que aniquilou todas as chances de uma sobrevivência civilizada. Depois de anos de precários trabalhos temporários o italiano Angelo di Carlo, de 54 anos, ateou fogo a si próprio dentro de um carro estacionado em frente à sede de um órgão público de Bologna. 
Em toda a zona do euro cresce a prática medieval de anonimamente abandonar bebês dentro de caixas, nas portas de hospitais e igrejas. A Inglaterra de Lord Beveridge, um dos inspiradores do Welfare State, vem cortando recorrentemente alguns serviços especializados para idosos e doentes terminais. Cortes substantivos no valor das aposentadorias e pensões constituem uma realidade cada vez mais presente para muitos integrantes da chamada comunidade europeia. 
Por toda a Europa, museus, teatros, bibliotecas e universidades públicas sofrem cortes sistemáticos em seus orçamentos. Em muitas empresas e órgãos públicos, é cada vez mais comum a prática de trabalhar sem receber. Ainda oficialmente empregado é possível, ao menos, manter a esperança de um dia ter seus vencimentos efetivamente pagos. Em pior situação está o desempregado. 
Grande parte deles são jovens altamente qualificados. A massa crescente de excluídos não é um fenômeno apenas europeu. O mesmo acontece nos EUA. Ali, mais do que em outros países, a taxa de desemprego tomada isoladamente não sintetiza mais a real situação do mercado de trabalho. A grande maioria daqueles que hoje estão empregados ocupam postos de trabalho precários e em tempo parcial, concentrados no setor de serviços. Grande parte dos postos mais qualificados e de melhor remuneração da indústria de transformação foi destruída pela concorrência chinesa. 
Nesse cenário, a classe média vai sendo espremida, a mobilidade social é para baixo e o mercado de trabalho vai ficando cada vez mais polarizado no país das oportunidades. No extremo superior, pouquíssimos executivos bem remunerados, que têm sua renda diretamente atrelada ao mercado financeiro. No extremo inferior, uma massa de serviçais pessoais mal pagos sem nenhuma segurança, que vivem uma realidade não muito diferente dos mais de 100 milhões que recebem algum tipo de assistência direta do Estado. O Welfare State, ao invés de se espalhar pelo planeta, encampando as tradicionais hordas de excluídos, encolhe, aumentando a quantidade de deserdados. 
Muitos dirão que essa situação será revertida com a suposta volta do crescimento econômico e a retomada do investimento na indústria de transformação nestes países. Não é verdade. É preciso aceitar rapidamente o seguinte fato: no capitalismo, o inexorável progresso tecnológico torna o trabalho redundante. O exponencial aumento da produtividade e da produção industrial é acompanhado pela constante redução da necessidade de trabalhadores diretos. Uma vez excluídos, reincorporam-se – aqueles que o conseguem – como serviçais baratos dentro de um circuito de renda comandado pelos detentores da maior parcela da riqueza disponível. 
Por isso mesmo, a crescente desigualdade de renda é funcional para explicar a dinâmica desse mercado de trabalho polarizado. Diante desse quadro, uma pergunta torna-se inevitável: estamos nós, hoje, vivendo uma crise que nega os princípios fundamentais que regem a vida civilizada e democrática? E se isso for verdade: quanto tempo mais a humanidade suportará tamanha regressão? A angústia torna-se ainda maior quando constatamos que as possibilidades de conforto material para a grande maioria da população deste planeta são reais. É preciso agradecer ao capitalismo, e ao seu desatinado desenvolvimento, pela exuberância de riqueza gerada. 
Ele proporcionou ao homem o domínio da natureza e uma espantosa capacidade de produzir em larga escala os bens essenciais para a satisfação das necessidades humanas imediatas: diante dessa riqueza, é difícil encontrar razões para explicar a escassez de comida, de transporte, de saúde, de moradia, de segurança contra a velhice etc. Numa expressão: escassez de bem-estar
Um bem-estar que marcou os conhecidos 'anos dourados' do capitalismo. A dolorosa experiência de duas grandes guerras e da depressão pós-1929 nos ensinou que deveríamos limitar e controlar as livres forças do mercado. Os grilhões colocados pela sociedade na economia explicam quase 30 anos de pleno emprego, aumento de salários e lucros e, principalmente, a consolidação e a expansão do chamado Estado de Bem-estar Social (Welfare State). 
Os direitos garantidos pelo Estado não deveriam ser apenas individuais, mas também coletivos. Vale dizer: sociais. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que o direito à saúde, à previdência, à habitação, à assistência, à educação e ao trabalho eram universalizados, milhares de empregos públicos de médicos, enfermeiras, professores e tantos outros eram criados. 
O Welfare State não pode ser interpretado como uma mera reforma do capitalismo, mas sim como uma grande transformação econômica, social e política. Ele é, nesse sentido, revolucionário. Não foi um presente de governos ou empresas, mas a consequência de potentes lutas sociais que conseguiram negociar a repartição da riqueza. Isso fica sintetizado na emergência de um Estado que institucionalizou a ética da solidariedade. O indivíduo cedeu lugar ao cidadão portador de direitos. 
No entanto, as gerações que cresceram sob o manto generoso da proteção social e do pleno emprego acabaram por naturalizar tais conquistas. As novas e prósperas classes médias esqueceram-se de que seus pais e avós lutaram e morreram por isso. Um esquecimento que custa e custará muito caro às gerações atuais e futuras. Caminhamos para um 'Estado de Mal-estar Social'! 
Essa regressão social começou quando começamos a libertar a economia dos limites impostos pela sociedade, já no início dos anos 1970. Sob o ideário liberal dos mercados, em nome da eficiência e da competição, a ética da solidariedade foi substituída pela ética da concorrência ou do desempenho. 
É o seu desempenho individual no mercado que define a sua posição na sociedade: vencedor ou perdedor. Ainda que a grande maioria das pessoas seja perdedora e não concorra em condições de igualdade, não existem outras classificações possíveis. Não por acaso, o principal slogan do movimento Occupy Wall Street é 'somos os 99%'. Não por acaso, grande parte da população espanhola está indignada. 
Mesmo em um país como o Brasil, a despeito dos importantes avanços econômicos e sociais recentes, a outrora chamada 'dívida social' ainda é enorme e se expressa na precariedade que assola todos os níveis da vida nacional. Não se pode ignorar que esses caminhos tomados nos países centrais terão impactos sobre esta jovem democracia que busca, ainda, universalizar os direitos de cidadania estabelecidos nos meados do século passado nas nações desenvolvidas. 
Como então acreditar que precisamos escolher entre o caos e a austeridade fiscal dos Estados, se essa austeridade é o próprio caos? Como aceitar que grande parte da carga tributária seja diretamente direcionada para as mãos do 1% detentor de carteiras de títulos financeiros? Por que a posse de tais papéis que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza gerada pela totalidade da sociedade ganha preeminência diante das necessidades da vida dos cidadãos? 
Por que os homens do século XXI submetem aos ditames do ganho financeiro estéril o direito ao conforto, à educação e à cultura?As respostas para tais questões não serão encontradas nos meios de comunicação de massa. Os espaços de informação e de formação da consciência política e coletiva foram ocupados por aparatos comprometidos com a força dos mais fortes e controlado pela hegemonia das banalidades. É mais importante perguntar o que o sujeito comeu no café-da-manhã do que promover reflexões sobre os rumos da humanidade. 
A civilização precisa ser defendida! As promessas da modernidade ainda não foram entregues. A autonomia do indivíduo significa a liberdade de se autorrealizar. Algo impensável para o homem que precisa preocupar-se cotidianamente com a sua sobrevivência física e material. Isso implica numa selvageria que deveria ficar restrita, por exemplo, a uma alcateia de lobos ferozes. 
Ao longo dos últimos de 200 anos de história do capitalismo, o homem controlou a natureza e criou um nível de riqueza capaz de garantir a sobrevivência e o bem-estar de toda a população do planeta. Isto não pode ficar restrito a uma ínfima parte dela. Mesmo porque o bem-estar de um só é possível quando os demais à sua volta encontram-se na mesma situação. 
Caso contrário, a reação é inevitável, violenta e incontrolável: a liberdade só é possível com igualdade e respeito ao Outro. É preciso colocar novamente em movimento as engrenagens da civilização."


SAIBA MAIS

(imagem em http://minney.org)