13 novembro 2009

EUFEMISMO INDIGESTO

"Abate humanitário"?!?!?



Conforme certa definição, "abate humanitário" é o "conjunto de procedimentos" que "garantem o bem-estar dos animais que serão abatidos", desde o embarque na propriedade rural até a operação de sangria no matadouro-frigorífico.

"Humanitário" . . . "bem-estar" . . . são palavras muito fortes, que não refletem o que realmente querem dizer. Termos como “humanitário” e “bem-estar” deveriam ser aplicados apenas nos casos em que buscamos o bem do indivíduo, e não para as situações em que procuramos matá-lo de alguma forma.

Quando enviamos ajuda humanitária à Africa, não estamos enviando recursos para que os africanos possam se matar de uma forma mais rápida e menos dolorosa. Não estamos pensando: “Bem, aquele continente vive na miséria, cheio de fome, doenças e guerras, vamos resolver isso matando-os”. Ajuda humanitária significa alimentos, água, remédios, cobertores — ou seja, intervenções realmente em benefício daqueles indivíduos.

Quando falamos em "bem-estar social", "bem-estar do idoso", "bem-estar da criança", não estamos pensando em outra coisa senão proporcionar o bem a essas pessoas. Jamais pensamos em métodos de "matá-los com menos sofrimento", porque isso seria o contrário de bem-estar, seria o contrário do que consideramos humanitário.

Por isso, quando escutamos alguém falar em “abate humanitário”, isso soa como um contrassenso. A primeira palavra representa algo que vai contra os interesses do indivíduo e a segunda encerra um significado que atende aos seus interesses.

Igualmente, a idéia de “bem-estar de animais de produção” é um contrassenso, pois a preocupação com o bem-estar implica em preocupar-se com a vida, e não visar sua morte ou exploração de alguma forma.

Essas duas ideias — "abate" e "humanitário" — só se harmonizam quando a morte do animal atende aos seus próprios interesses, como no caso em que o animal padece de uma enfermidade grave e incurável e a continuidade de sua vida representa um sofrimento. Nesses casos a eutanásia, ou dar fim a uma vida seguindo uma técnica menos dolorosa, pode ser classificada como humanitária, e uma preocupação com o bem-estar.

As organizações e campanhas que pregam pelo "abate humanitário" alegam que esse é "um modo de evitar o sofrimento desnecessário dos animais que precisam ser abatidos". Mas o que é o “sofrimento necessário” e o que diz que animais “precisam ser abatidos”?

O abate de animais para consumo não é, de forma alguma, uma necessidade. As pessoas podem até comer carne porque querem, porque gostam ou porque sentem ser necessário, mas ninguém pode alegar que isso seja uma necessidade orgânica do ser humano.

Porém, se comer carne é hoje uma opção, não comê-la também o é. Se uma pessoa sinceramente sente que animais não devem sofrer para servir de alimento para os seres humanos, seria mais lógico que essa pessoa adotasse o vegetarianismo, ao invés de ficar inventando subterfúgios para continuar comendo animais sob a alegação de que esses não sofreram.

A insensibilização que antecede o abate não assegura que o processo todo seja livre de crueldades, especialmente porque o sofrimento não pode ser quantificado com base em contusões e mugidos de dor. Qualquer que seja o método, os animais perdem a vida e isso por si só já é cruel.

Caso todo o problema inerente ao abate de uma criatura sensível se resumisse à dor perceptível, matar um ser humano por essa mesma técnica não deveria ser considerado um crime. Caso o conceito de "abate humanitário" fizesse sentido, atordoar um ser humano com uma marretada na cabeça antes de sangrá-lo e desmembrá-lo não seria um crime — e menos ainda matá-lo com um tiro certeiro na cabeça.

Está claro que a idéia de "abate humanitário" não cabe, e nem atende aos interesses dos animais. Mas se não atende aos interesses dos animais, ao interesse de quem ela atende?

A questão é bastante complexa, porque envolve ideologias, forças do mercado, psicologia do consumidor e política, entre outras facetas. O conceito de "abate humanitário" atende aos interesses de diferentes grupos (pecuaristas, grupos auto-intitulados “protetores de animais”, políticos etc.), não necessariamente integrados entre si.

Pecuaristas têm interesse no chamado "abate humanitário" porque ele não implica em gastos para o produtor, mas investimentos que se revertem em lucros. A carne de animais abatidos “humanitariamente” tem um valor agregado. O consumidor paga um preço diferenciado por acreditar que está consumindo um produto diferenciado.

Possuir um selo de “humanidade” em sua carne significa acesso a mercados mais exigentes, como o europeu. Além disso, verificou-se cientificamente que o manejo menos truculento dos animais reflete positivamente na qualidade do produto final, e, portanto, mudanças nesse manejo atendem aos interesses do pecuarista pois melhoram a produção e agregam valor ao produto.

Os chamados protetores de animais têm interesses no abate humanitário, mas não porque este é condizente com o interesse dos animais. Em verdade, esses “protetores“ não se preocupam com animais — talvez, sim, com cães e gatos, mas não com animais ditos “de produção”. Esses “protetores de animais” não os protegem: eles os criam, depois os matam e depois os comem. Eles podem não criá-los nem matá-los, mas certamente os comem e mesmo quando não o fazem por algum motivo, não se opõem a que outros o façam.

“Protetores de animais” lucram com o conceito de "abate humanitário", pois isso lhes rende a possibilidade de fazerem parte do mercado. Há entidades de “proteção” animal que se especializaram em matar animais. Sob a pretensão de estarem ajudando aos animais, elas mantêm fazendas-modelo onde pecuaristas podem aprender de que forma melhorar sua produção de carne, leite e ovos e de que forma matar animais de uma maneira mais aceitável pelo ponto de vista do consumidor comum. Podem também lucrar, servindo como consultores em frigoríficos.

Simultaneamente, essas entidades fazem propaganda no sentido de convencer o consumidor de que todo o problema relacionado ao consumo de carne encontra-se na procedência da carne, na forma como os animais são mortos, e não no fato de que eles são mortos em si. A fórmula é muito bem-sucedida, pois essas entidades acabam gozando de bom prestígio entre pecuaristas e consumidores comuns, não se opondo a quase ninguém. Políticos vêem na aliança com essas entidades a certeza de reeleição, e por isso elas contam também com seu apoio.

Exercendo seu poder para educar as pessoas ao “consumo responsável” de carne, essas entidades não pedem que as pessoas façam nada diferente do que já faziam. Elas não propõem uma mudança, de fato, em favor dos animais, pois os padrões de consumo da população mantêm-se os mesmos e os animais continuam a ser explorados.

A diferença está no fato de que essas campanhas colocam a entidade em evidência: a tal entidade se promove, deixando a impressão de que faz algo de realmente importante em nome de uma boa causa. Dessa forma, as pessoas realizam doações e manifestam seu apoio, ainda que sem saberem ao certo o que estão apoiando.

Com a carne abatida de forma “humanitária”, o consumidor se sente mais à vontade para continuar consumindo carne, pois o incômodo gerado pela ideia de que é errado matar animais para comer é encoberta pela idéia de que, naqueles casos, os animais "não sofreram para morrer". E o pecuarista lucra mais, porque pode cobrar um preço maior por seus produtos, bem como colocar seus produtos em mercados mais exigentes.

De toda forma, os interesses desses grupos não coincidem com os interesses dos animais, e por esse motivo não faz sentido que esses grupos utilizem nomenclaturas tais como como "bem-estar" e "humanitário", que podem vir a dar essa impressão.

Entidades que promovem o "abate humanitário" não protegem animais, mas sim promovem sua exploração. Elas estão alinhadas com os setores produtivos, que exploram os animais, e não com os animais. Se elas protegessem animais, trabalhariam pelo melhor de seus interesses. Seriam, eles mesmos, vegetarianos — e não consumidores de carne. No entanto, adotando sua postura e sua retórica, não desagradam a praticamente ninguém, e dessa maneira enriquecem e ganham influência.

Entidades que realmente promovem o bem dos animais esforçam-se em ensinar às pessoas que animais jamais devem ser usados para atender às nossas vontades. Elas devem se posicionar de forma clara a mostrar que comer animais não é uma opção ética, e que não importa que métodos utilizemos de criação e abate, isso não mudará a realidade de que animais não são produtos e que o problema de sua exploração não se limita à forma como o fazemos.

Ainda que uma campanha pelo vegetarianismo provavelmente conte com menos popularidade e menor adesão da população, até porque isso demanda uma mudança verdadeira na vida das pessoas, certamente uma campanha nesse sentido atende ao interesse real dos animais.

Ainda que reconhecendo que abater animais com menos crueldade é menos ruim do que abatê-los com mais crueldade, repudiamos que o abate que envolve menor crueldade seja objeto de incentivo. Esses "métodos" não deveriam ser incentivados, premiados, promovidos ou elogiados, porque "um pouco menos cruel" não é sinônimo de "sem crueldade", e só porque é algo um pouco mais controlado não quer dizer que seja certo ou correto.


* O biólogo da UNICAMP Sérgio Greif é mestre em Alimentos e Nutrição, co-autor do livro "A Verdadeira Face da Experimentação Animal: A sua saúde em perigo" e autor de "Alternativas ao Uso de Animais Vivos na Educação: pela ciência responsável".


O AUTOR
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