15 janeiro 2016

EVIDÊNCIAS E MITOS


Saber tradicional contra 
a mudança climática*


Adolfo é um exemplo dos benefícios da agroecologia camponesa em El Salvador.
(Foto: Jason Taylor/Amigos da Terra Internacional)

Milhões de agricultores africanos não precisam se adaptar à mudança climática, já que o fizeram graças à agroecologia, baseada em práticas e saberes tradicionais, que também permitem garantir a segurança alimentar.Como muitas comunidades na África, as das Terras Altas de Gamo, na Etiópia, estão bem preparadas para as variações climáticas.

A grande biodiversidade da área, a base de seu sistema agrícola, permite adaptar suas práticas agrícolas com facilidade às variações do clima.Essa comunidade também está acostumada a administrar o ambiente e os recursos naturais de forma adequada e sustentável, arraigada em seus costumes e conhecimentos tradicionais, o que as torna resilientes a inundações e secas.

Os sistemas agrícolas ancestrais costumam ser considerados muito arcaicos pelos governos centrais, mas têm muito a ensinar ao mundo, especialmente diante dos desafios apresentados pela mudança climática e a insegurança alimentar.A partir dos conhecimentos indígenas, agricultores de todo o continente conseguiram acumular muita experiência e inovação de sucesso em matéria agrícola.

Esses esforços se desenvolveram de forma consistente nas últimas décadas, após as secas que atingiram muitos países nos anos 1970 e 1980.No Quênia, o sistema de agricultura biointensiva foi desenhado nos últimos 30 anos para ajudar os pequenos agricultores a cultivarem maior quantidade de alimentos nas terras mais pobres e com um mínimo de água.

Cerca de 200 mil agricultores quenianos, que alimentam aproximadamente um milhão de pessoas, adotaram a agricultura biointensiva, que utiliza até 90% menos água do que com a alternativa convencional, alémde reduzir entre 50% e 100% a compra de fertilizantes, graças a um conjunto de práticas agroecológicas que fornecem mais material orgânico ao solo, a quase continuidade da cobertura de terras cultivadas e uma fertilidade adequada para a boa saúde das plantas e raízes.

A região do Sahel, na fronteira do deserto do Saara, é conhecida por suas duras condições ambientais e pela ameaça da desertificação. O que não se sabe muito é a respeito do enorme êxito das ações adotadas para deter o avanço das terras áridas.Lançado nos anos 1980, o Projeto de Desenvolvimento Rural Keita, em Níger, demorou 20 anos para recuperar o equilíbrio ecológico e melhorar drasticamente a economia agrária na região.

Nesse período, foram plantadas cerca de 18 milhões de árvores, a superfície florestal aumentou 300%, enquanto a estepe com arbustos e dunas diminuíram 30%. Além disso, as terras cultiváveis se expandiram em cerca de 80%.Em toda a região, um grande número de projetos utilizou soluções agroecológicas para restabelecer as terras degradadas e poupar os escassos recursos hídricos, ao mesmo tempo aumentando a produção de alimentos e melhorando a resiliência e o sustento dos agricultores.


Frederic Mousseau coordena as pesquisas a partir do
Instituto Oakland, sediado na Califórnia, EUA.
(Foto: Cortesia do autor)

Em Tombuctu, norte de Mali, o Sistema de Intensificação do Arroz conseguiu resultados surpreendentes com produção de nove toneladas desse cereal por hectare, mais que o dobro do que permitem os métodos convencionais, ao mesmo tempo em que foi possível economizar água e outros insumos.Em Burkina Faso, as técnicas de conservação de água e do solo, incluída uma versão modernizada da tradicional forma de plantar com poços, teve muito êxito na recuperação das terras degradadas e melhoria da produção de alimentos e da renda.

Os países da África austral lidam com contínuas secas, que geram grandes perdas nos cultivos de milho, o principal cereal da região. Há vários anos, agricultores e governos criaram uma variedade de soluções agroecológicas para evitar as crises alimentares e impulsionar a resiliência frente aos impactos climáticos.O enfoque comum foi abandonar o cultivo exclusivo de milho, que é altamente vulnerável às variações climáticas, além de muito custoso e de exigir a compra de insumos, como sementes híbridas e fertilizantes.

As soluções sustentáveis e acessíveis de sucesso incluem gestão e coleta de água da chuva, ampliação da agricultura de conservação e regenerativa, promoção da produção e do consumo de mandioca e outros tubérculos, diversificação da produção e integração de cultivos com árvores fertilizantes e plantas leguminosas que fixam o nitrogênio.

Os exemplos anteriores procedem de uma série de 33 estudos de caso, divulgados pelo Instituto Oakland, que ilustram o enorme sucesso da agricultura agroecológica em todo o continente africano diante da mudança climática, da fome e da pobreza. Um dos aspectos que todos apresentam em comum é que os agricultores, entre os quais há muitas mulheres, estão à frente de seus próprios projetos de desenvolvimento.

Outro elemento comum é que não se baseiam em insumos agrícolas externos, como as sementes comerciais, os fertilizantes sintéticos e os pesticidas químicos, a base da agricultura chamada convencional.Os principais insumos para a agroecologia são a própria energia das pessoas e o senso comum, conhecimentos compartilhados e, naturalmente, o respeito pelos recursos naturais e seu uso adequado.

A pergunta sobre a razão de esses casos de sucesso não serem conhecidos é pertinente; ficam enterrados sob a retórica do discurso favorável a um desenvolvimento baseado em um coquetel destrutivo de ignorância, cobiça e neocolonialismo.

Desde a crise dos preços dos alimentos em 2008, ouviu-se uma e outra vez o argumento de que a África necessitava do investimento estrangeiro na agricultura para “desenvolver” o continente, de uma revolução verde, de mais fertilizantes sintéticos e de cultivos transgênicos para combater a fome e a pobreza. 

Pois bem, os estudos de caso da agroecologia jogam por terra esses mitos.

A evidência, fatos e dados irrefutáveis, estão ali: milhões de africanos já desenharam suas próprias soluções para seu próprio beneficio e conseguiram se adaptar tanto aos sistemas agrícolas insustentáveis herdados da época colonial com aos atuais desafios que a mudança climática e a degradação ambiental apresentam.

Outra boa notícia é que a transição para a agroecologia é acessível para os governos africanos, que já gastam milhares de milhões de dólares por ano em subsídios para fertilizantes e pesticidas. No Malawi, os subsídios à agricultura chegam a cerca de 10% do orçamento nacional anual.

A evidência existente, baseada na experiência de milhões de agricultores, deveria impulsionar os governos africanos a optarem pela única alternativa razoável: que o continente seja o protagonista na superação da fome e na exploração corporativa e avanço para uma forma sustentável e adaptada ao clima para a produção de alimentos para todos. 


*Frederic Mousseau é diretor de políticas 
do Instituto Oakland e coordenador da 
pesquisa do projeto de agroecologia.
Conteúdo publicado em www.envolverde.com.br


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