01 agosto 2006

CRÔNICA DA RAZÃO (?!?)

A gota d'água


Razão. Você a evoca, angustiada. E a razão surge, gritando em cada sinal vermelho: pare de ser louca! Mas aí o sinal esverdeia e você precisa seguir em frente, entre os automóveis e a chuva que não cessa. Ainda bem. Não fosse o sinal verde, talvez agora você ainda estivesse ali, pensativa, o carro parado no cruzamento. O cruzamento da ruazinha da razão com a imensa avenida da loucura... e do desejo.

As pessoas na rua correm para se proteger da chuva, todas certas de seu caminho, seguem rápidas e decididas. Você não. Tudo em seu ser se contradiz, uma célula quer ir, outra morre de medo. Sim e não. Em seu peito o coração bate no compasso da urgência, em suas veias o sangue se desencontra. Não e sim. No rádio, música nenhuma entende o seu estado de ânimo. E essa chuva, a deixar tudo ainda mais confuso... Sim e não. Ai, que vontade imensa de gritar... Você respira fundo. E acelera.

Francamente falando, você sabe muito bem que limites existem para serem quebrados, não é? E os seus há muito que a desafiam: sim. Para ser exato, desde que ele surgiu, de repente, não mais que de repente. Ele e seu olhar inquietante, o jeito diferente... Você já não sabe se ele é louco ou se louca fica você toda vez que o vê. Tem algo nele que dá um arrepio, um calor, não é? Você nunca sentiu antes, não sabe explicar. Não. É algo meio insano, que a faz inventar uma mentira e largar o trabalho no meio da tarde. É algo que a fez soltar o cabelo, deixar o soutien na bolsa e sair no meio dessa chuva louca... Ai, essa chuva... Sua vida antes era tão certa e agora tudo é tão... imprevisível. Mas ao mesmo tempo você tem raiva dele, por invadir assim seu espaço, ele não tinha o direito. Não. Sim, ele tinha virado seus dias de cabeça para baixo. Ah, mas você tem que admitir: ver o mundo desse novo ângulo é muito interessante...

Ahnn... mas... e a ética, como fica? Afinal, você tem namorado. E você o ama. Bem, na verdade talvez não o ame como achava que amava. Sim, pois se amasse, não desejaria esse homem assim. Ou não? Ou o amor nada tem a ver com o desejo? Se os homens são capazes, por que você não seria também? Uma mulher pode entregar-se a um homem, uma vez só, e voltar para outro, como se nada tivesse acontecido? Como uma chuva que de repente já passou? "Sim, pode", você mesma responde, surpresa com a própria determinação. Pode voltar sim, mas não como se nada houvesse acontecido, pois sempre terá acontecido, "sempre...?", você completa, olhando seu sorriso diferente no retrovisor.

Você lembra da última briga, um dia antes, e então, sem perceber... seu pé pisa mais fundo no acelerador. E a chuva aumenta, seguindo sua determinação. Sim. Não, não se trata de vingança, nada disso. É só a velocidade do desejo. Não. Na verdade é mais que isso. É uma necessidade. Você tem de encontrá-lo. Sim. Você precisa. É a única coisa que importa agora. Em frente ao prédio, dentro do carro, você inventa mil coisas para se dar mais um tempo para pensar. Olha a chuva, olha de novo. Então finalmente pega o celular. E liga. Deixa chamar uma vez e desliga. Agora só tem que aguardar alguns segundos. Mas não são alguns segundos — é um século!

Um século inteiro de dúvida e angústia, onde razão e desejo vêm se chocar em sua alma feito as gotas da chuva que batem no vidro, uma gota sussurrando "sim" e a outra gota gritando "não", "sim" e "não", "não" e "sim"... Lógico que não! De súbito, você dá-se conta do absurdo. Claro que não. O que está fazendo? Esperando por um homem que mal conhece? Para quê? O que lhe dirá? Que largou o trabalho no meio dessa tempestade só para desejar-lhe "boa-tarde"? O que ele vai pensar? Vai pensar que é louca, claro.

De repente, tudo fica límpido como um dia de sol. Não, não vale a pena se arriscar tanto por algo que não tem chance de dar certo, não, alguém que você não sabe quem realmente é, alguém que semana que vem irá embora, alguém que... A porta se abre, porém. E ele entra. E senta-se no banco ao seu lado. Todo molhado, rindo, parece um menino travesso. Você se vira, assustada, e dá de cara com aqueles olhos, aquele sorriso... Meu Deus, você pensa, me ajude, por favor, me ajude... Mas seu deus não pode ajudar, não com essa chuva toda. Não.

Ele então se aproxima, estende a mão e delicadamente toca seu rosto. Não... Não é mais um menino travesso, é um homem. Não? Então tudo que não podia acontecer, acontece: uma gota dágua escorre... da mão dele... para dentro... do seu decote. Você a sente deslizar... pelo contorno do seio... cada microscópico pelinho acusando a passagem... Enquanto a gota prossegue em seu íntimo percurso, você fecha os olhos, sente um arrepio na alma inteira. Você quer morrer, só para não ter que decidir.

Você se controla para não gritar, para não abrir a porta e sair correndo na tempestade, você quase explodindo, esticada entre o sim e o não... Não. Não, você não grita. Nem poderia. Porque os lábios dele, molhados da chuva, tocam os seus e o grito morre em sua boca. E da vida previsível faz-se a aventura. Não mais que de repente.


SERVIÇO
O colunista Ricardo Kelmer é escritor, letrista e roteirista e mora no Rio de Janeiro, Terra (a 3.ª pedra do Sol)...

LEIA COM IMAGENS E COMENTÁRIOS
www.ricardokelmer.net/rktxtagotadagua.htm

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