06 setembro 2010

CIDADANIA PLANETÁRIA

Nossa grande família*


Honroso é morrer pela pátria: militar adora dizer isso. Bem, morrer pelo Brasil eu, particularmente, nunca morri. Mas já desmaiei por ele. Verdade.

Tinha 12 anos e estudava no Colégio Militar. E como o colégio vive em função do Sete de Setembro, toda semana tinha treinamento para o grande desfile. Um dia, num desses treinos, nós todos metidos naquele pesado uniforme de gala e perfilados sob o solzão cruel, minha vista escureceu, o corpo fraquejou e bufo!, desabei feito um armário, de cara no chão.

Despertei na enfermaria, tudo bem, só uns arranhões. Novecentos e dezenove, você está liberado por hoje! Sim, senhor!

Se desmaiar já é ridículo, imagine morrer pela pátria. Isso não faz mais sentido num tempo em que ou nos unimos pelo bem geral do planeta e da espécie ou afundamos todos. Sim, eu sei que muitos ainda crêem em superioridade racial e religiosa e outras ilusões.

Porém está em curso atualmente uma revolução que ameaça mudar tudo isso. Silenciosa e sem sangue, ela está fazendo com que a humanidade, cada vez mais, se veja como um único povo a habitar uma única pátria: o planeta Terra.

Estamos presenciando uma profunda transformação no modo da espécie entender a si mesma e ao mundo em que vive. Isso é tão sério que pode mudar para sempre o rumo evolutivo do Homo sapiens.

Sempre que se aprofunda um pouco mais na maneira de entender a si mesmo(a), você adentra um novo nível pessoal de evolução. Você se transforma. E como tudo são espelhos a refletir tudo que há, nada fica imune à sua transformação.

O mundo ao redor muda… simplesmente porque você mudou. Este é o segredo da revolução: você não precisa transformar o mundo, basta mudar a si mesmo(a).

E quando ela começou? Impossível precisar. No entanto, foi no século 20 que ela tomou impulso. E no final da década de 1960, quando divulgaram ao mundo aquela primeira foto da Terra tirada do espaço, algo estalou na alma coletiva da humanidade.

Foi um momento histórico muito significativo. A maioria não parou para refletir, mas o estalo aconteceu. Pela primeira vez olhamos para a imagem do planetinha azul e percebemos, enternecidos, como ele é lindo. E nos demos conta de algo incrível: do alto não há fronteiras! Habitamos todos o mesmo lar! E somos todos responsáveis por ele!

É animador ver as novas gerações convivendo mais naturalmente com essa noção de cidadania planetária. As comunicações fáceis e a internet incentivam os jovens a viajar mais, conhecer o mundo. Seus horizontes são mais amplos e não se conformam com fronteiras nem intolerâncias raciais, étnicas, sexistas ou religiosas.

Veem os fanatismos nacionalistas atuais como os últimos espasmos da velha mentalidade que não quer morrer – mas já está moribunda. Para eles, essa noção de patriotismo é mesquinha demais diante de uma pátria bem maior — que se chama Terra.

A nova revolução traz em sua luta o clamor pela conscientização ecológica, pelas liberdades individuais e pelo respeito à vida e às diferenças. Pode soar ingenuamente otimista, mas são conceitos que a cada dia se espalham mundo afora feito um vírus benigno.

A Terra é meu país e a humanidade minha família — este é o grito dos seus soldados que, desarmados, se denominam cidadãos do mundo, uma nacionalidade bem mais abrangente e que abraça toda a riqueza da diversidade cultural humana.

São ainda minoria, sim, esses belos revolucionários, mas sua bandeira tremula com a cor de todos os povos e eu me orgulho de lutar ao lado deles.

Sim, eu sei que a espécie humana está muito doente e que em seu delírio põe em risco a própria sobrevivência. Vejo tempos terríveis se anunciando no horizonte. Mas sei também que às vezes é preciso que a doença atinja seu clímax para então, somente então, regredir.

Entram aí os ideais revolucionários: eles é que nos manterão vivos durante a longa noite.

É por isso que quando assisto à parada do Sete de Setembro, tudo aquilo me parece tão pequeno… E é por isso que nada vejo de honroso em morrer pela pátria. Sim, adoro o Brasil e seu povo.

Porém, nossa pátria verdadeira, de todos nós, é muito maior que o Brasil. E nossa família não são apenas brasileiros, brancos ou negros ou índios, muçulmanos ou cristãos, homo ou heterossexuais: nossa família é a humanidade inteira, bela e diversa.


*o escritor cearense Ricardo Kelmer publicou este texto em seu livro A arte zen de tanger caranguejos (edição do autor)

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