07 julho 2015

VALORES RENTÁVEIS (?!?)


Dilemas éticos*




Vivemos uma época em que um prato de feijão em casa é mais importante que qualquer ideal e qualquer bem comum

Segunda-feira, estive na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, para conversar com Eugênio Bucci, Mario Sergio Cortella e o rabino Michel Schlesinger.

Era o começo de um ciclo de debates intitulado "Dilemas Éticos". Eis as notas do que eu disse.

Para mim (e para a maioria dos psicólogos), o dilema é a única forma aceitável de pensamento ético.

Na hora de decidir o que é certo e o que é errado (e eventualmente de agir em consequência), só pensa eticamente quem não segue receitas e escolhe, em seu foro íntimo, soluções, todas insatisfatórias.

Já falei mais de uma vez do trabalho de Lawrence Kohlberg, o psicólogo piagetiano que tentou medir a nossa capacidade de pensar eticamente.

Para Kohlberg, recorrer a "normas" instituídas (ou seja, a qualquer lista do que se pode e do que não se pode fazer) é prova de debilidade moral: só pensa moralmente quem julga por convicção própria, sem se preocupar com as normas.

Será que isso significa que cada um teria seu pensamento ético particular? Kohlberg esperava que não, pois imaginava que existissem grandes princípios nos quais os indivíduos se inspirariam na hora de acionar seu foro íntimo. Quais princípios?

Essa é a dificuldade moderna. Quem julga a partir de normas ou mandamentos não é um indivíduo moral, e a escolha ética é uma experiência singular e autônoma, de cada um. Nessa condição, como encontrar universais éticos (claro, sem ceder à tentação de aceitar princípios instituídos)?

De Kant a Kohlberg ou a John Rawls, os que tentaram responder a essa pergunta chegaram a conclusões parecidas: talvez existam princípios implícitos, que funcionam sem normas instituídas, mas que o indivíduo respeita sem precisar de contratos -- por exemplo, "trate o outro como você gostaria que ele te tratasse".

Nessa altura de minha breve apresentação, mostrei um vídeo em que uma jovem mulher prega seu seio esquerdo numa tábua de madeira. E perguntei: que tal se essa mulher se inspirasse no princípio universal que mencionei e nos tratasse como ela gostaria que os outros a tratassem?

Segundo a nossa premissa, tratando os outros como ela quer ser tratada, estaria respeitando nosso grande "princípio ético universal".

Este pequeno paradoxo serve para lembrar que os princípios universais são sempre fundados no bem-querer dos sujeitos que se acham "normais". Ou seja, o que é vendido como universal é apenas a suposta "normalidade".

Nada grave, salvo que, em geral, o sujeito que se acha "normal" é uma "alma bela", ou seja, uma alma preocupada apenas em parecer nobre, moral e pura aos olhos dos outros e aos seus próprios.

Enfim, a procura por universais éticos levou a modernidade a propor o respeito à vida como um princípio ético universal óbvio e aparentemente incontestável (afinal, se estivermos todos mortos, a ética vai servir para o quê?).

A vida é um valor ético curioso e inédito. No mundo pré-moderno, um valor é aquela coisa pela qual vale a pena morrer. Em outras palavras, é fácil reconhecer os valores (fidelidade, honra, palavra dada, honestidade, fé etc.) porque eles estão acima da vida.

A posição contemporânea, ao contrário, coloca a vida como valor supremo ou como uma condição dos outros valores: algo que custe a vida não tem como ser um valor ético.

Desenha-se assim um leque, entre dois extremos.

Do lado da ética clássica, há um extremo em que a morte é erotizada: meu desprezo pela vida prova que sigo grandes ideais.

É o que pensam os membros de gangues que se tatuam com caveiras, é o que pensavam nazistas e fascistas quando também usavam a caveira para afirmar que seus valores só podiam ser supremos, visto que estavam dispostos a morrer por eles.

Infelizmente para os praticantes desse extremo, o martírio nunca foi uma prova da existência de Deus, ou seja, nossa morte, por mais heroica que seja, não demonstra que nossos valores mereciam que a gente morresse por eles.

Do lado da ética contemporânea, no outro extremo, aceita-se qualquer covardia, pois nenhum valor respeitável poderia exigir que lhe sacrificássemos a vida. A modernidade pretende que os bons valores sejam baratos. Só falta concluir que os bons valores precisam ser, além de baratos, rentáveis.

Nossa época idealiza a vida nua (a sobrevivência). Sem surpresa: é uma época em que o prato de feijão em casa é mais importante do que qualquer ideal e qualquer tipo de bem comum.

*Contardo Caligaris é psicanalista e escritor. Conteúdo
publicado na seção
Ilustrada do jornal Folha de S.Paulo.
Imagem em eHowenespanol.com/
Photodisc/Photodisc/Getty Images


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