04 fevereiro 2008

SEM DORMIR

Ao som de duas insônias






Je sentis ma gorge serrée par la main terrible de l'hystérie.
(Charles Baudelaire)

Eis que coloquei minhas palavras em tua boca.
(Jeremias, 1.9)

Só sobrevivo se rio do que é sério.
(Anônimo)






Naquele dia do mês de março de 1909, Giovanni Pascoli havia recebido, pela manhã, uma carta que o deixara inquieto. Datada do dia 19, trazia um conteúdo inesperado, e a resposta a dar suscitava reflexão, embora não pudesse tardar. Olhando a paisagem quieta do entardecer, em pé no pórtico de sua bela casa em Castelvecchio, o poeta sentia um rebuliço interior que o impedia de pensar com clareza. Não sabia se deveria responder à carta, ou, caso respondesse, se deveria fazê-lo de modo indefinido ou com decididas afirmações. Optou por respondê-la com evasivas, mas cuidando, contudo, de não alimentar esperanças.


A despeito da decisão, não se tranqüilizou por inteiro, restando-lhe uma espécie de tremor sutil na mão direita, suficiente para dificultar sua escrita; restou-lhe, também, um fio muito fino e frio no abdome, apesar da bebida quente que ingerira antes de se deitar. A estranha sensação acabou permanecendo em sua noite insone, povoada por imagens de letras, que se embaralhavam formando nomes, a soar em sua mente, imersos em versos que não conseguia delimitar, e dos quais logo se esquecia, numa sucessão de aparições e perdas.

Longe dali, Ferdinand de Saussure, depois de mais um dia dedicado à preparação da segunda série de conferências sobre Lingüística Geral que ministrava na Universidade de Genebra, também não pudera dormir, e dedicav-se a continuar seus cadernos de estudo sobre anagramas, sistematicamente preenchidos durante as noites, até a hora em que o sono o impedia de prosseguir. Nessa ocasião, com a insônia, o trabalho avançava até um ponto em que sua vista se turvava e seu pensamento se aturdia, num misto de sonho e realidade que o tornava ainda mais aflito quanto à veracidade de suas descobertas.


Vinham-lhe à mente, então, a partir de direções difusas, inauditos sons guturais, enquanto sentia, pouco a pouco, a garganta apertar-se. Uma breve pausa e alguns goles de água, sorvidos em silêncio num canto escuro, eram suficientes para que se percebesse parcialmente refeito, retornando à sua longa tarefa.


Após alguns anos de pesquisa incansável, permanecia a dúvida primária quanto à própria existência do objeto de sua busca: apesar do deslumbramento a que se entregara, por reconhecer tantos anagramas evidentes nas obras que examinava e conseguir formular as regras que deveriam ter orientado os autores na realização daqueles feitos poéticos, persistia nele um duro foco de incerteza, imanente ao seu estudo, que se contrapunha ao encanto como um gume aguçado, impiedoso, a introduzir-se cada vez mais fundo em seu espírito.


Durante a madrugada, além do trabalho, ocupava-lhe a imaginação uma possível segunda carta dirigida a Pascoli, na qual formularia, de maneira sucinta mas suficiente, a questão crucial que o aliviaria pela resposta que obtivesse, mesmo que negativa. Lia e relia a primeira carta enviada àquele poeta, um dos poucos a cultivar ainda a poesia latina, e tantas vezes premiado no Certamen Hoeufftianum da Academia de Amsterdã:

"Tendo me ocupado da poesia latina moderna a propósito da versificação latina em geral, encontrei-me mais uma vez diante do seguinte problema: certos pormenores técnicos que parecem observados na versificação de alguns modernos são puramente fortuitos ou são desejados e aplicados de maneira consciente?

"Entre todos aqueles que se distinguiram em nossos dias, por obras de poesia latina e que poderiam, por conseguinte, esclarecer-me, são poucos os que se poderia considerar ter dado modelos tão perfeitos como os seus e onde se sentisse tão nitidamente a continuação de uma tradição muito pura. É a razão que me leva a não hesitar em dirigir-me particularmente ao senhor e que deve servir-me de justificativa pela grande liberdade que tomo.

"Caso o senhor estivesse disposto a receber em pormenor minhas perguntas, eu teria a honra de enviá-las numa próxima carta."

Saussure iniciara sua pesquisa sobre os anagramas em 1906, e, a esta altura, já havia preenchido seu 1.170.º caderno, além de papéis avulsos. No momento, fazia anotações nas grandes folhas em que tratava dos poemas latinos de Pascoli e de outro autor, também italiano e também Giovanni — Rosati. Seus cadernos continham essencialmente exercícios de decifração, por meio dos quais buscava encontrar os anagramas fonéticos que teriam sido incluídos pelos versificadores: um ou mais versos comporiam uma certa palavra, geralmente o nome de um deus ou de um herói.


Ao escutar versos latinos, Saussure ouvia levantarem-se, pouco a pouco, os fonemas principais de um nome próprio, distribuídos — acreditava — intencionalmente e conforme normas definíveis. A cada lance de dados do olhar, surgia um premeditado arranjo anagramático, a evidenciar a intervenção do demiurgo, uma inteligência organizadora do caos, que a sua própria desvendava; divisados em toda parte, os nomes insuflavam o seu ânimo, nunca serenado, todavia, pela convicção.

Pascoli, professor da Universidade de Bolonha e, portanto, seu colega de ensino acadêmico, seria seu salvador, o deus-vivo a revelar-lhe a própria intenção criadora, a dar-lhe sustentação às asas do seu vôo, a confirmar-lhe a determinação dos gestos por ele desvelados, a dar-lhe a paz necessária à sua excitação, chão à sua descoberta sem limites.


Ao raiar a aurora, entrevendo por uma fresta um tênue raio de sol, Saussure adormeceu. E teve um sonho curioso, com estantes e estantes de livros; numa delas (onde seus olhos captaram de relance a palavra “Ficção” encerrada numa etiqueta) apareceu-lhe, num close à meia-luz —detalhe sobressaído em meio às contíguas edições na linha da prateleira —, o título Sobre a psicopatologia da vida cotidiana.


A inscrição fê-lo despertar-se. Lembrou-se, logo, de já ter visto tal volume numa livraria de Genebra, sem chegar a folheá-lo — era, sabia-o ele, outra obra de Sigmund Freud, autor de A interpretação dos sonhos, que também não lera. Tratava-se, aquele vislumbre, de algo estranho e mero acaso, como lhe pareciam ser, quase sempre, os sonhos... Após deixar de lado os signos esvanecidos na memória, voltou ao seu mundo presente, focalizando a resposta que receberia do poeta italiano.

Maria, irmã de Pascoli, notou na manhã seguinte a sua inquietude: estava lívido, com as feições contraídas, visivelmente maldormido. Trazia uma expressão rude, grave, interrogativa, além do habitual ar sombrio que se instalara nele desde o assassinato nunca aclarado de seu pai Ruggero, quando tinha apenas 12 anos. Ela ofereceu-lhe, então, um revigorante desjejum, que ele mal tocou.


Ainda à mesa, o escritor relia versos seus, de Ultima linea — “Ergo Vergilius cecinit nova saecula frustra, / frustra ego praedixi, frustraque effata Sybilla est...” —, de Senex Coricius — “Spectabat mare caeruleum de vertice collis / mente Cilix tota. Prope falx et marra iacebant” —, e de Nestor, na página casualmente aberta de Catullocalvos — “sub arbore umbra Nestoris sedet senis”. Depois, debruçou-se sobre versos de seus familiares poetas latinos, buscando neles, também, possíveis “pormenores técnicos” a que o lingüista aludia. Seriam procedimentos por ele ignorados? E, se apareciam em seus próprios poemas, seriam fruto de uma consciência misteriosa que guiara sua pena, uma consciência alheia que o tornara um simples instrumento de sua vontade?


Ou estaria tão imbuído da poesia no idioma do Lácio que a criaria, em seus moldes, como um meio transmissor de uma tradição, sem que isto se limitasse à sua iniciativa? Afinal, ele, Iohannis, recebera medalhas de ouro do concurso holandês, o que revelava que, aos olhos dos críticos, assim como aos do próprio Saussure, seus versos eram legítimos e destacados representantes da poética latina. Não lhe agradava a idéia de não saber coisas importantes acerca de sua própria obra, composta com o máximo de atenção, labor, dedicação e controle que podia oferecer a si mesmo, naquilo que mais lhe importava.


Outrossim, conhecia e estimava, é claro, os momentos em que lhe vinham soluções sem que as perseguisse, as fases mais férteis, a inspiração especial de alguns momentos, sem os quais, acreditava ele, não seria um poeta. Mas a simples sugestão de algo que fizesse sem ter plena ciência de que o fazia fincava-lhe novamente no abdome um frio e fino fio, como se a ponta delgadíssima de uma seta, ou mesmo uma agulha gélida, estivesse cravando-se em suas entranhas. Desencorajando o interlocutor sobre a existência de algo que não identificava, foi cortês o suficiente, em sua resposta, para propiciar a nova e esperada carta, com a questão mais definida acerca dos tais “pormenores”. A mensagem não categórica dava-lhe a alternativa de estar escondendo o que não queria revelar, em vez de atestar o possível desconhecimento de algo que pudesse ser real.

Ao receber a resposta de Pascoli, Saussure inicialmente prostrou-se, por não lhe indicar, ela, qualquer identificação com suas sugestões. Anteviu, portanto, a negativa quanto à realidade de seus achados, talvez apenas uma miragem, uma projeção de sua mente excitada sobre uma massa, ou mancha, que se prestava a qualquer molde que a ela se impusesse. Mas a chama de uma possível revelação, vista a cada passo de seu empenho, não se apagava com mais uma incerteza, e sua iniciativa de escrever a segunda carta deu-se logo, sem rodeios. Era o dia 6 de abril:

"Dois ou três exemplos bastarão para colocar o senhor no centro da questão que se colocou ao meu espírito e, ao mesmo tempo, permitir-lhe uma resposta geral, pois, se é somente o acaso que está em jogo nesses poucos exemplos, disso decorre certamente que o mesmo acontece em todos os outros. De antemão, creio bastante provável, a julgar por algumas palavras de sua carta, que tudo não deve passar de simples coincidências fortuitas:

1. É por acaso ou intencional que, numa passagem como Catullocalvos p. 16, o nome Falerni se encontre rodeado de palavras que reproduzem as sílabas desse nome


... / facundi cálices hausere – alterni /
... / FA AL ER AL ERNI/

2. Ibidem à p. 18, é ainda por acaso que as sílabas de 'Ulixes' parecem procuradas numa seqüência de palavras como

... / Urbium simul / Undique pepulit lux umbras ... resides
... / U - - - UL U - - - - - ULI- -X - - - - S - - - S-ES,

assim como as de 'Circe' em / Cicuresque /
CI -R- CE
ou em / Comes est itineris illi cerva pede / ... ?!?"

A carta continuaria, mas o essencial estava dito. Se isto não fosse, como deixara explícito, um procedimento consciente, nada o seria, e seu esforço teria sido em vão. A angústia instalou-se nele com um suspiro indefinível, pelo tempo que durasse a espera de uma resposta que previa desértica, árida, vazia, a consumir-lhe o ânimo.

Sem prestar muita atenção à correspondência, Maria passou-a ao irmão, que apanhou imediatamente, dentre as diversas cartas, a do mestre suíço. Ela notou, mais uma vez, que o desassossego tomava conta do poeta, alçando-se, pela premência de algo oculto, a um nível bem mais elevado do que aquele que percebia nele desde os dias finais do último mês.

Pascoli leu-a rapidamente, e dirigiu-se, como em busca de ar, aos arredores de sua residência. Uma névoa discreta tomava conta do lugar, fundindo-se a seu pensamento, curiosamente vago. Não pensara, considerava-se certo disso, em espargir elementos de nomes nos poemas, mas eles estavam ali, e o remetente da carta tinha razão. Desconhecia de fato algo que ele próprio fizera? Ou seu conhecimento era maior do que supunha? Por um instante, pareceu-lhe natural que tivesse engendrado tais palavras nos versos.

Seu devaneio ingressou numa dimensão mais interna, a olhar para dentro, buscando enxergar em meio à névoa que espelhava o exterior, agora não visto — e viu um possível outro de si, a rir de sua ignorância, a ironizar sua cegueira. Voltando novamente o olhar para o lado de fora, dominado por uma superfície vaporosa amena, continuou a ver uma face de si mesmo no éter, como um reflexo que, não obedecendo a seu gesto, ria enquanto ele franzia o cenho.

Seria este outro o autor daqueles gestos precisos de sílabas, de sons, entremeando-se em seu ofício como uma linha que costura no tecido alheio, mas cede à fusão de seu feitio? Ou seu riso denunciava a não-autoria de quem quer que não fosse a própria escritura, a gerar em seus meandros suas próprias leis, dotada de um cérebro, motor da linguagem, criador de urdiduras independentes do veículo de sua concretização, esta mão trêmula?

Não havia resposta a dar, sem partir-se, sem negar a sua consciência, ou exaurir a do outro, ou afirmar o inexistente, ou cegar-se diante da evidência, ou admitir que sua poesia lhe era transcendente, ou que, se não o era, talvez fosse algo que não conhecia bem, e, se não conhecia bem, talvez não existisse, assim como sua consciência — que agora lhe parecia demente, com um teor indistinto de mentira a roer-lhe desde dentro (e desde fora).

Nada a responder. A decisão amainou-lhe a alma, que clareava em seu centro, enquanto a névoa se dissipava, permitindo contornos mais nítidos. O ar frio entrou mais livremente em seus pulmões, acalentando-lhe o peito revolto. Parecia agora delimitar-se, em raros traços de vapor, a face translúcida de seu pai, sugerindo-lhe, com voz pálida e longínqua, que deixasse os mistérios se diluírem nos vãos do intelecto.

No início, a ausência de resposta intensificou a agrura de Saussure, que, febril, já não conseguia prosseguir a escrita em seus papéis grandes. As noites tornaram-se vazias, porque povoadas apenas de fantasmas. Fantasmas são nada, vêm e vão, à mercê dos ventos de nossa fantasia; emergem e retornam ao infinito das possibilidades amorfas, ao vazio das formas. Só a intenção, só o ato atento determina a existência do que se identifica. O que apenas surge, e some, nada é, desprovido da determinação da vigília. Assim os sonhos incertos das noites em Genebra, quando a elas retornou o sono, só reaparecido no momento em que os cadernos foram definitivamente ocultados dos olhos exangues de seu autor, num móvel de sólida madeira.


*Marcelo Tápia, radicado em São Paulo/SP, é professor, poeta, musicista e escritor. Produziu este conto motivado por informações contidas na obra As palavras sob as palavras – Os anagramas de Ferdinand de Saussure, de Jean Starobinski (tradução de Carlos Vogt, Editora Perspectiva, São Paulo/SP, 1974). Os trechos das cartas de Saussure (foto acima) foram retirados desta edição, com mínimas alterações, assim como dela provém alguma frase incorporada ao texto






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